Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 1-19-21)

Tudo alli é quebrado


Tudo alli é quebrado, anonymo e impertencente.
Vi alli grandes movimentos de ternura, que me pare-
ceram revelar o fundo de pobres almas tristes; desco-
bri que esses movimentos não duravam mais que a ho-
ra em que eram palavras, e que tinham raiz — quantas
vezes o notei com a sagacidade dos silenciosos — na
analogia de qualquer coisa com o piedoso, perdida
com a rapidez da novidade da notação, e, ou-
tras vezes, no vinho do jantar do enternecido. Havia
sempre uma relação systematizada entre o humanitaris-
mo e a aguardente de bagaço, e foram muitos os gran-
des gestos que soffreram do copo superfluo ou do pleo-
nasmo da sêde.

Essas creaturas tinham todas vendido a alma a
um diabo da plebe infernal, avarento de sordidezas
e de relaxamentos. Viviam a intoxicação da vaidade e
do ocio, e morriam mollemente, entre coxins de
palavras, num amarfanhamento de lacraus de cuspo.

O mais extraordinario de toda essa gente era a
nenhuma importancia, em nenhum sentido, de toda ella.
Uns eram redactores dos principaes jornaes, e conse-
guiam não existir; outros tinham logares publicos em
vista no annuario, e conseguiam não figurar em nada
da vida; outros eram poetas até consagrados, mas uma
mesma poeira de cinza lhes tornava lividas as faces
parvuas, e tudo era um tumulo de embalsamados hirtos,
postos com a mão nas costas em posturas de vidas.

Guardo do pouco tempo que me estagnei nesse exi-
lio da esperteza mental uma recordação de bons momen-
tos de graça franca, de muitos momentos monotonos e
tristes, de alguns perfis recortados no nada, de al-
guns gestos dados ás serventes do acaso, e, em resumo,
um tedio de nausea physica e a memoria de algumas ane-
doctas com espirito.

Nelles se intercalavam, como espaços, uns homens
de mais edade, alguns com ditos de espirito pregresso,
que diziam mal como os outros, e das mesmas pessoas.

Nunca senti tanta sympathia pelos inferiores da
gloria publica como quando os vi malsinar por estes
inferiores sem querer essa pobre gloria. Reconheci
a razão do triumpho porque os parias do
Grande triumphavam em relação a estes, e não em rela-
ção á humanidade.


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Pobres diabos sempre com fome — ou com fome de
almoço, ou com fome de celebridade, ou com fome das
sobremesas da vida. Quem os ouve, e os não conhece,
julga estar escutando os mestres de Napoleão e os
instructores de Shakespeare.

Ha os que vencem no amor, ha os que vencem na
politica, ha os que vencem na arte. Os primeiros
teem a vantagem da narrativa, pois se pode vencer
largamente no amor sem haver conhecimento
celebre do que succedeu. É certo que, ao ouvir con-
tar a qualquer d'esses individuos as suas Marathonas
sexuaes, uma vaga suspeita nos invade, pela altura
do septimo desfloramento. Os que são amantes de
senhoras de titulo, ou muito conhecidas (são, aliás,
quasi todos), fazem um tal gasto de condessas que
uma estatistica das suas conquistas não deixaria se-
rias e commedidas nem as
bisavós dos titulos presentes.

Outros especializam no conflicto physico, e ma-
taram os campeões de box da Europa numa noi-
te de pandega, á esquina do Chiado. Uns são influen-
tes junto de todos os ministros de todos os ministe-
rios, e estes são aquelles de que menos ha que duvidar,
pois não repugna


Uns são grandes sadicos, outros são grandes pede-
rastas, outros confessam, com uma tristeza de voz alta,
que são brutaes com mulheres. Trouxeram-as alli, a chi-
cote, pelos caminhos da vida. No fim ficam a dever o
café.

Ha os poetas , ha os


Não conheço melhor cura para toda esta enxurrada
de sombras que o conhecimento direito da vida humana
corrente, na sua realidade commercial, por exemplo,
como a que me surge no escriptorio da Rua dos Doura-
dores. Com que allivio eu volvia d'aquelle manicomio
de titeres para a presença real do Moreira, meu che-
fe, guarda-livros authentico e sabedor, mal vestido e
mal tratado, mas, o que nenhum dos outros conseguia
ser, o que se chama um homem...