Chove muito, mais, sempre mais


Chove muito, mais, sempre mais... Há como que uma coisa que vai desabar no exterior negro...

Todo o amontoado irregular e montanhoso da cidade parece-me hoje uma planície, uma planície de chuva. Por onde quer que alongue os olhos tudo é cor de chuva, negro-pálido.

Tenho sensações estranhas, todas elas frias. Ora me parece que a paisagem essencial é bruma, e que as casas é que são a bruma que a vela.

Uma espécie de pré-neurose do que serei quando já não for gela-me corpo e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de dentro. Numa névoa de intuição, sinto-me, matéria morta, caído na chuva, gemido pelo vento. E o frio do que não sentirei morde o coração actual.


Título: Chove muito, mais, sempre mais
Heterónimo: Bernardo Soares
Número: 69
Página: 104
Nota: [5-2, ms.];