Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 1-49r)

Como uma esperança negra


L. do D.

Como uma esperança negra, qualquer coisa de mais antici-
pador pairou; a mesma chuva pareceu intimidar-se; um negrume surdo calou-se sobre o ambiente.
E subito, como um grito, um formidavel dia estilha-
çou-se. Uma luz de inferno frio falso visitara o conteudo
de tudo, e enchera os cerebros e os recantos. Tudo
pasmou. Um peso respirado cahiu de tudo porque o golpe passara.
A chuva triste bruta era alegre com o seu ruido bruto e hu-
mildequasi humano. Sem querer, o coração sentia-se e pensar era
um estonteamento. Uma vaga religião formava-se no
escriptorio. Ninguem estava quem era, e o patrão Vas-
ques appareceu á porta do gabinete para pensar em di-
zer qualquer coisa. O Moreira sorriu, tendo ainda nos
arredores da cara o amarello do medo subito. E o seu
sorriso dizia que sem duvida o trovão seguinte deveria
ser já mais longe. Uma carroça rapida estorvou alto
os ruidos da rua.
Involuntariamente o telephone (o) tiritou. O patrão Vas-
ques, em vez de retroceder para o escriptorio, avançou
para o apparelho da sala grande. Houve um repouso e
um silencio e a chuva cahia como um pesadello. O pa-
trão Vasques esqueceu-se do telephone, que não tocara
mais. O moço mexeu-se, ao fundo da casa, como uma coisa
incommoda.


Uma grande alegria, cheia de repouso e de livra-
ção, desconcertou-nos a todos. Trabalhámos meio ton-
tos, agradaveis, sociaveis com uma profusão natural.
O moço, sem que ninguem lh'o dissesse, abriu amplas
as janellas. Um cheiro a qualquer coisa fresca en-
trou, com o ar de agua, pela grande sala dentro. A
chuva, já leve, cahia humilde. Os sons da rua, que
continuavam os mesmos, eram differentes. Ouvia-se a
voz dos carroceiros, e eram realmente gente. Nitida-
mente, na rua ao lado, as campainhas dos electricos
tinham tambem uma socialidade comnosco. Uma garga-
lhada de creança deserta fez de canario na atmosphe-
ra limpa. A chuva leve decresceu.

Eram seis horas. Fechava-se o escriptorio. O patrão
Vasques disse, do guarda-vento entreaberto,
"Podem sahir", e disse-o como uma benção commercial.
Levantei-me logo, fechei o livro e guardei-o. Puz a
caneta visivelmente sobre a depressão do tinteiro, e,
avançando para o Moreira, disse-lhe um "até amanhã"
cheio de esperança, e apertei-lhe a mão como depois
de um grande favor.