Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 1-67r)

A persistencia instinctiva da vida


L. do D.

A persistencia instinctiva da vida atravez
da apparencia da intelligencia é para mim uma das contem-
plações mais intimas e mais constantes. O disfarce irreal
da consciencia serve sómente para me destacar aquella in-
consciencia que não disfarça.

Da nascença á morte, o homem vive servo da
mesma exterioridade de si-mesmo que teem os animaes. Toda
a vida não vive, mas vegeta em maior grau e com mais com-
plexidade. Guia-se por normas que não sabe que existem,
nem que por ellas se guia, e as suas idéas, os seus senti-
mentos, os seus actos, são todos inconscientes — não por-
que nelles falte a consciencia, mas porque nelles não ha
duas consciencias.

Vislumbres de ter a illusão — tanto, e não
mais, tem o maior dos homens.

Sigo, num pensamento de divagação, a historia
vulgar das vidas vulgares. Vejo como em tudo são servos do
temperamento subconsciente, das circumstancias externas a-
lheias, dos impulsos de convivio e desconvivio que nelle,
por elle, e com elle, se chocam como pouca coisa.

Quantas vezes os tenho ouvido dizer a mesma
phrase que symboliza todo o absurdo, todo o nada, toda a
insciencia fallada das suas vidas. É aquella phrase que
usam de qualquer prazer material: "é o que a gente leva
d'esta vida"... Leva onde? leva para onde? leva para quê?
Seria triste despertal-os da sombra com uma pergunta como
esta... Falla assim um materialista, porque todo o homem
que falla assim é, ainda que subconscientemente, materia-
lista. O que é que elle pensa levar da vida, e de que ma-
neira? Para onde leva as costelletas de porco e vinho
tinto e a rapariga casual? Para que céu em que não crê?
Para que terra para onde não leva senão a podridão que
toda a sua vida foi de latente? Não conheço phrase mais
tragica nem mais plenamente reveladora da humanidade huma-
na. Assim diriam as plantas se soubessem conhecer que go-
sam do sol. Assim diriam dos seus prazeres somnambulos os
bichos inferiores ao homem na expressão de si mesmos. E,
quem sabe, eu que fallo, se, ao escrever estas palavras
numa vaga impressão de que poderão durar, não acho tambem
que a memoria de as ter escripto é o que eu "levo d'esta
vida". E, como o inutil cadaver do vulgar á terra commum,
baixa ao esquecimento commum o cadaver egualmente inutil
da minha prosa feita a attender. As costelletas de por-
co, o vinho, a rapariga do outro? Para que troço eu d'el-
les?

Irmãos na commum insciencia, modos differen-
tes do mesmo sangue, fórmas diversas da mesma
herança — qual de nós poderá renegar o outro?
Renega-se a mulher mas não a mãe, não o pae,
não o irmão.