Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-5)

Só uma vez fui verdadeiramente amado


L. do D.

Só uma vez fui verdadeiramente amado. Sympathias,
tive-as sempre, e de todos. Nem ao mais casual tem sido fa-
cil ser grosseiro, ou ser brusco, ou ser até frio para com-
migo. Algumas sympathias tive que, com auxilio meu, poderia
— pelo menos talvez — ter convertido em amor ou affecto.
Nunca tive paciencia ou attenção do espirito para sequer de-
sejar empregar esse exforço.

A principio de observar isto em mim, julguei —
tanto nos desconhecemos — que havia neste caso da minha alma
uma razão de timidez. Mas depois descobri que não havia; ha-
via um tedio das emoções, differente do tedio da vida, uma
impaciencia de me ligar a qualquer sentimento continuo, so-
bretudo quando houvesse de se lhe atrelar um exforço prose-
guido. Para quê?, pensava em mim o que não pensa. Tenho a sub-
tileza bastante, o tacto psycholgico suffiente para saber o
"como"; o "como do como" sempre me escapou. A minha fraqueza
de vontade começou sempre por ser uma fraqueza da vontade
de ter vontade. Assim me succedeu nas emoções como me suc-
cede na inteliggencia, e na vontade mesma, e em
tudo quanto é vida.

Mas d'aquella vez em que uma malicia da opportuni-
dade me fez julgar que amava, e verificar deveras que era a-
mado, fiquei, primeiro, estonteado e confuso, como se me sa-
hira uma sorte grande em moeda inconvertivel. Fiquei, depois,
porque ninguem é humano sem o ser, levemente envaidecido;
esta emoção, porém, que pareceria a mais natural, passou ra-
pidamente. Succedeu-se um sentimento difficil de definir,
mas em que se salientavam incommodamente as sensações de te-
dio, de humilhação e de fadiga.

De tedio, como se o Destino me houvesse imposto
uma tarefa em serões desconhecidos. De tedio, como se um no-
vo dever — o de uma horrorosa reciprocidade — me fôsse dado
com a ironia de um privilegio, que eu me teria ainda que ma-
çar, agradecendo-o ao Destino. De tedio, como se me não bas-
tasse a monotonia inconsistente da vida, para agora se lhe
sobrepôr a monotonia obrigatoria de um sentimento definido.

E de humilhação, sim, de humilhação. Tardei em per-
ceber a que vinha um sentimento apparentemente tão pouco jus-
tificado pela sua causa. O amor a ser amado deveria ter-me
apparecido. Deveria ter-me envaidecido de alguem reparar at-
tentamente para a minha existencia como ser amavel. Mas, à-
parte o breve momento de real envaidecimento, em que todavia
não sei se o pasmo teve mais parte que a propria vaidade, a
humilhação foi a sensação que recebi de mim. Senti que me
era dada uma especie de premio destinado a outrem — premio,
sim, de valia para quem naturalmente o merecesse.

Mas fadiga, sobretudo fadiga — a fadiga que passa o


tedio. Comprehendi então uma phrase de Chateubriand que
sempre me enganara por falta de experiencia de mim mesmo.
Diz Chateaubriand, figurando-se em René, "amarem-o cansava-
o" — on le fatiguait en l'aimant. Conheci, com pasmo, que
isto representava uma experiencia identica á minha, e cuja
verdade portanto eu não tinha o direito de negar.

A fadiga de ser amado, de ser amado deveras! A
fadiga de sermos o objecto do fardo das emoções alheias!
Converter quem quizera ver-se livre, sempre livre, no moço
de fretes da responsabilidade de corresponder, da decencia
de se não afastar, para que se não supponha que se é prin-
cipe nas emoções e se renega o maximo que uma alma humana
pode dar. A fadiga [de] se nos tornar a existencia uma coisa
dependente em absoluto de uma relação com um sentimento de
outrem! A fadiga de, em todo o caso, ter forçosamente que
sentir, ter forçosamente, ainda que sem reciprocidade, que
amar um pouco tambem!

Passou de mim, como até mim veio, esse episodio
na sombra. Hoje não resta d'elle nada, nem na minha
intelligencia, nem na minha emoção. Não me trouxe experien-
cia alguma que eu não pudesse ter deduzido das leis da vi-
da humana cujo conhecimento instinctivo albergo em mim
porque sou humano. Não me deu nem prazer que eu recorde
com tristeza, ou pesar que eu lembre com tristeza tambem.
Tenho a impressão de que foi uma coisa que li algures, um
incidente succedido a outrem, novella de que li metade,
e de que a outra metade faltou, sem que me importasse que
faltasse, pois até onde a li estava certa, e, embora não
tivesse sentido, tal era já que lhe não poderia dar
sentido a parte faltante, qualquer que fôsse o seu enredo.

Resta-me apenas uma gratidão a quem me amou.
Mas é uma gratidão abstracta, pasmada, mais da intelligen-
cia do que de qualquer emoção. Tenho pena que alguem ti-
vesse tido pena por minha causa; é d'isso que tenho pena,
e não tenho pena de mais nada.

Não é natural que a vida me traga outro encontro
com as emoções naturaes. Quasi desejo que appareça para ver
como sinto d'essa segunda vez, depois de ter atravessado
toda uma extensa analyse da primeira experiencia.
não digo já a primeira experiencia, mas toda a ex-
tensa analyse d'ella que é para mim a sua realidade. É possi-
vel que sinta menos; é tambem possivel que sinta mais. Se
o Destino o der, que o dê. Sobre as emoções tenho curiosidade.
Sobre os factos, quaesquer que venham a ser, não tenho curio-
sidade alguma.