Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-17r)

Considerar a nossa maior angustia


L. do D.

Considerar a nossa maior angustia como um incidente
sem importancia, não só na vida do universo, mas na da
nossa mesma alma, é o principio da sabedoria. Considerar isto
em pleno meio d'essa angustia é a sabedoria inteira. No momen-
to em que soffremos, parece que a dôr humana é infinita. Mas
nem a dor humana é infinita, pois nada ha humano de infinito,
nem a nossa dor vale mais que ser uma dor que nós temos.

Quantas vezes, sob o peso de um tedio que parece
ser loucura, ou de uma angustia que parece passar além d'ella,
paro, hesitante, antes que me revolte, hesito, parando, an-
tes que me divinize. Dor de não saber o que é o mysterio do
mundo, dor de nos não amarem, dor de serem injustos comnosco,
dor de pesar a vida sobre nós, suffocando e prendendo, dor
de dentes, dor de sapatos apertados — quem pode di-
zer qual é maior em si mesmo, quanto mais nos outros, ou na
generalidade dos que existem?

Para alguns que me fallam e me ouvem, sou
um insensivel. Sou, porém, mais sensivel — creio — que a vas-
ta maioria dos homens. O que sou, comtudo, é um sensivel que
se conhece, e que, portanto, conhece a sensibilidade.

Ah, não é verdade que a vida seja dolorosa, ou que
seja doloroso pensar na vida. O que é verdade é que a nossa
dor só é seria e grave quando a fingimos tal. Se formos na-
turaes, ella passará assim como veio, esbater-se-ha assim
como cresceu. Tudo é nada, e a nossa dor nelle.

Escrevo isto sob a oppressão de um tedio que pa-
rece não caber em mim, ou precisar de mais que da minha alma
para ter onde estar; de uma oppressão de todos e de tudo que
me estrangula e desvaira; de um sentimento physico da in-
comprehensão alheia que me perturba e esmaga. Mas
ergo a cabeça para o céu azul alheio, exponho a face ao ven-
to inconscientemente fresco, baixo as palpebras
depois de ter visto, esqueço a face depois de ter sen-
tido. Não fico melhor, mas fico differente. Ver-me liberta-
me de mim. Quasi sorrio, não porque me comprehenda, mas por-
que, tendo-me tornado outro, me deixei de poder comprehender.
No alto do céu, como um nada visivel, uma nuvem pequenis-
sima é um esquecimento branco do universo inteiro.

                                              5-4-1933.