Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-21r)

As phrases que nunca escreverei


L. do D.

As phrases que nunca escreverei, as paisagens que não poderei
nunca descrever, com que clareza as dicto á minha inercia e
as descrevo na minha meditação, quando, recostado, não pertenço, se
não lonquiquamente, á vida. Talho phrases inteiras, perfeitas
palavra a palavra, contexturas de dramas narram-se-me
construidas no espirito, sinto o movimento metrico e verbal de
grandes poemas em todas as os palavras elementos, e um grande enthusiasmo,
como um escravo que não vejo, segue-me na penumbra. Mas se
der um passo, da cadeira, onde jazo estas sensações quasi cumpridas,
para a meza onde quereria escrevel-as, as palavras fugiram fogem, os dramas
morreram, do nexo vital que uniu o murmurio rhytmico não
ficou mais que uma saudade longinqua, um resto de sol sobre
montes afastados, um vento que ergueu as folhas ao pé do limiar
deserto, um parentesco nunca revelado, a orgia os prazeres dos outros, a
mulher, que a nossa intuição disse que olharia para traz, e
nunca chegou a existir.

Projectos, tenho-os tido todos. A Iliada que compuz teve uma
logica de estructura, uma concatenação organica de episodios que
Homero não
podia conseguir. A perfeição estudada dos meus versos por
completar em palavras deixou pobre a precisão de Virgilio e
frouxa a força de Milton. As satiras allegoricas que fiz
excederam todas a Swift na precisão symbolica dos parti-
culares exactamente ligados. Quantos E quantos Verlaines Horacios fui!

E sempre que me levantei da cadeira onde, na verdade, estas cousas
não foram absolutamente sonhadas, tive a dupla tragedia de as saber nullas e
de saber que não fôram todas sonho, que alguma cousa ficou d'ellas no limiar
abstracto em eu pensar e ellas serem.

Fui genio mais que nos sonhos e menos que na vida. A minha tragedia é esta. Fui o corre-
dor que cahiu quasi na meta, sendo, até ahi o primeiro.