Tudo quanto de desagradável nos sucede


Tudo quanto de desagradável nos sucede na vida — figuras ridículas que fazemos, maus gestos que temos, lapsos em que caímos de qualquer das virtudes — deve ser considerado como meros acidentes externos, impotentes para atingir a substância da alma. Tenhamo-los como dores de dentes, ou calos da vida, coisas que nos incomodam, nos são externas ainda que nossas, ou que só têm que supor a nossa existência orgânica ou que preocupar-se o que há de vital em nós.

Quando atingimos esta atitude, que é, em outro modo, a dos místicos, estamos defendidos não só do mundo mas de nós mesmos, pois vencemos o que em nós é externo, é outrem, é o contrário de nós e por isso o nosso inimigo.

Disse Horácio, falando do varão recto, que ficaria impávido ainda que em torno dele ruísse o mundo. A imagem é absurda, justo o seu sentido. Ainda que em torno de nós rua o que fingimos que somos, porque coexistimos, devemos ficar impávidos — não porque sejamos justos, mas porque somos nós, e sermos nós é nada ter que ver com essas coisas externas que ruem, ainda que ruam sobre o que para elas somos.

A vida deve ser, para os melhores, um valor que se recusa a confrontos.


Título: Tudo quanto de desagradável nos sucede
Heterónimo: Bernardo Soares
Número: 703
Página: 565
Nota: [2-24, ms.];