O povo é bom rapaz


O povo é bom rapaz.

O povo nunca é humanitário. O que há de mais fundamental na criatura do povo é a atenção estreita aos seus interesses e a exclusão cuidadosa, praticada tanto quanto possível, dos interesses alheios.

Quando o povo perde a tradição, quer dizer que se quebrou o laço social; e quando se quebra o laço social, resulta que se quebra o laço social entre a minoria e o povo. E quando se quebra o laço entre a minoria e o povo, acabam a arte e a verdadeira ciência, cessam as agências principais, de cuja existência a civilização deriva.

Existir é renegar. Que sou hoje, vivendo hoje, senão a renegação do que fui ontem, de quem fui ontem? Existir é desmentir-se. Não há nada de mais simbólico da vida do que aquelas notícias dos jornais que desmentem hoje o que o próprio jornal disse ontem.

Querer é não poder. Quem pôde quis antes de poder só depois de poder. Quem quer nunca há-de poder, porque se perde em querer. Creio que estes princípios são fundamentais.


Título: O povo é bom rapaz
Heterónimo: Vicente Guedes
Número: 308
Página: 251 - 252
Nota: [138A-10, ms.];