Os sentimentos que mais doem


L. do D.

Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais
pungem, são os que são absurdos — a ansia
de coisas impossiveis, precisamente porque são impossi-
veis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia
ter sido, a magua de não ser outro, a insatisfacção da ex-
istencia do mundo. Todos estes meios tons da consciencia
da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-
pôr do que somos. O sentirmo-nos é então um campo deserto
a escurecer, triste de juncos ao pé de um rio sem barcos,
negrejando claramente entre margens afastadas.

Não sei se estes sentimentos são uma loucura lenta do
desconsolo, se são reminiscencias de qualquer outro mundo
em que houvessemos estado — reminiscencias cruzadas e mis-
turadas, como coisas vistas em sonhos, absurdas na figura que vemos
mas não na origem se a soubessemos. Não sei se houve outros seres que fomos,
cuja maior completidão sentimos hoje, na sombra que d'elles
somos, de uma maneira incompleta — perdida a solidez e nós
figurando-nol-a mal nas duas dimensões da sombra que vivemos.

Sei que estes pensamentos da emoção doem com raiva na
alma. A impossibilidade de nos figurar uma coisa a que cor-
respondam, a impossibilidade de encontrar qualquer coisa
que substitua aquella a que se abraçam em visão — tudo isto
pesa como uma condemnação dada não se sabe onde, ou por quem,
ou porquê.

Mas o que fica de sentir tudo isto é com certeza um
desgosto da vida e de todos os seus gestos, um cansaço anti-
cipado dos desejos e de todos os seus modos, um desgosto
anonymo de todos os sentimentos. Nestas horas de magua
subtil, torna-se-nos impossivel, até em sonho, ser amante,
ser heroe, ser feliz. Tudo isso está vazio, até na idéa do
que é. Tudo isso está dito em outra linguagem,
para nós incomprehensivel, meros sons de syllabas sem fórma
no entendimento. A vida é ôca, a alma é ôca, o mundo é ôco.
Todos os deuses morrem de uma morte maior que a mor-
te. Tudo está mais vazio que o vacuo. É tudo um chaos de coisas
nenhumas.

Se penso isto e ólho, para ver se a realidade me mata
a sêde, vejo casas inexpressivas, caras inexpressivas, ges-
tos inexpressivos. Pedras, corpos, idéas — está tudo morto.
Todos os movimentos são paragens, a mesma paragem todos elles.
Nada me diz nada. Nada me é conhecido, não porque o extranhe
mas por que não sei o que é. Perdeu-se o mundo. E no fundo
da minha alma — como unica realidade d'este momento — ha uma magua
intensa e invisivel, uma tristeza como o som de quem chora chore num quarto
escuro.

                                                  3/9/1931.


Identificação: bn-acpc-e-e3-2-1-91_0085_43_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (27.5cm X 21.4cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Com marca LdoD
Datiloscrito (blue-ink) : Testemunho datiloscrito a tinta azul, com revisões manuscritas a tinta preta.
Data: 03-09-1931
Nota: LdoD, Texto escrito no recto de uma folha inteira.
Fac-símiles: BNP/E3, 2-43r.1