Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-54r)

Se considero com attenção a vida


                                        18/6/1931.

L. do D.

Se considero com attenção a vida que os homens
vivem, nada encontro nella que a difference da vida que
vivem os animaes. Uns e outros são lançados inconsciente-
mente atravez das cousas e do mundo; uns e outros se en-
treteem com intervallos; uns e outros percorrem diaria-
mente o mesmo percurso organico; uns e outros não pensam
para além do que pensam, nem vivem para além do que vivem.
O gato espoja-se ao sol e dorme alli. O homem espoja-se
á vida, com todas as suas complexidades, e dorme alli.
Nem um nem outro se liberta da lei fatal de ser como é.
Nenhum tenta levantar o peso de ser. Os maiores dos ho-
mems amam a gloria, mas amam-a, não como a uma immortali-
dade propria, senão como a uma immortalidade abstracta,
de que porventura não participem.

Estas considerações, que em mim são frequentes,
levam-me a uma admiração subita por aquella especie de
individuos que instinctivamente repugno. Refiro-me aos
mysticos e aos ascetas - aos remotos de todos os Tibets, aos Simões
Stylitas de todas as columnas. Estes, ainda que no ab-
surdo, tentam, de facto, libertar-se da lei animal. Estes,
ainda que na loucura, tentam, de facto, negar a lei da
vida, o espojar-se ao sol e o aguardar da morte sem pen-
sar nella. Buscam, ainda que parados no alto de uma co-
lumna; anseiam, ainda que numa cella sem luz; querem o
que não conhecem, ainda que no martyrio dado e na magua
imposta.

Nós outros todos, que vivemos animaes com mais
ou menos complexidade, atravessamos o palco como figuran-
tes que não fallam, contentes da solemnidade vaidosa do
trajecto. Cães e homens, gatos e heroes, pulgas e genios,
brincamos a existir, sem pensar nisso (que os melhores
pensam só em pensar) sob o grande socego das estrellas.
Os outros — os mysticos da má hora e do sacrificio — sen-
tem ao menos, com o corpo e o quotidiano, a presença ma-
gica do mysterio. São libertos, porque negam o sol visi-
vel; são plenos, porque se esvaziaram do vacuo do mundo.

Estou quasi mystico, com elles, ao fallar d'el-
les, mas seria incapaz de ser mais que estas palavras es-
criptas ao sabor da minha inclinação occasional. Serei
sempre da Rua dos Douradores, como a humanidade inteira.
Serei sempre, em verso ou prosa, empregado de carteira.
Serei sempre, no mystico ou no não-mystico, local e sub-
misso, servo das minhas sensações e da hora em que as ter.
Serei sempre, sob o grande pallio azul do céu mudo, pa-
gem num rito incomprehendido, vestido de vida para cum-
pril-o, e executando, sem saber porquê, gestos e passos,
posições e maneiras, até que a festa acabe,
ou o meu papel nella, e eu possa ir comer coisas de gala
nas grandes barracas que estão, dizem, lá
em baixo no fundo do jardim.