Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-56r)

Estou num dia em que me pesa


                                                20/6/1931.

L. do D.

Estou num dia em que me pesa, como uma entrada
no carcere, a monotonia de tudo. A monotonia de tudo não é,
porém, senão a monotonia de mim. Cada rosto, ainda que seja o
de quem vimos hontem, é outro hoje, pois que hoje não é hontem.
Cada dia é o dia que é, e nunca houve outro egual no mundo.
em nossa alma está a identidade — a identidade sentida, embora
falsa, consigo mesma — pela qual tudo se assemelha e se simplifica. O mundo é coisas destacadas e arestas
differentes; mas, se somos myopes, é uma nevoa insufficente e continua.

O meu desejo é fugir. Fugir ao que conheço, fugir
ao que é meu, fugir ao que amo. Desejo partir — não para as
Indias impossiveis, ou para as grandes ilhas ao Sul de tudo,
mas para o logar qualquer — aldeia ou ermo — que tenha em si
o não ser este logar. Quero não ver mais estes rostos, estes
habitos e estes dias. Quero repousar, alheio, do meu fingi-
mento organico. Quero sentir o somno chegar como vida, e
não como repouso. Uma cabana à beira mar, uma caverna, até,
no socalco rugoso de uma serra, me pode dar isto. Infelizmente,
só a minha vontade m'o não pode dar.

A escravidão é a lei da vida, e não ha outra lei,
porque esta tem que cumprir-se, sem revolta possivel nem re-
fugio que achar. Uns nascem escravos, outros tornam-se escra-
vos, e a outros a escravidão é dada. O amor cobarde que todos temos
à liberdade — que, se a tivessemos, extranhariamos, por nova, repudian-
do-a — é o verdadeiro signal do peso da nossa escravidão.
Eu mesmo, que acabo de dizer que desejaria a cabana ou caverna
onde estivesse livre da monotonia de tudo, que é a de mim,
ousaria eu partir para essa cabana ou caverna, sabendo, por
conhecimento entendimento, que, poisque a monotonia é de mim, a haveria
sempre de ter commigo? Eu mesmo, que suffoco onde estou e
porque estou, onde respiraria melhor, se a doença é dos meus
pulmões e não das dos coisas ares que me cercam? Eu mesmo,
que anceio alto pelo sol puro e os campos livres, pelo mar
visivel e o horizonte inteiro, quem me diz que não extranharia
a cama, ou a comida, ou não ter que descer os oito lances de escada até á rua, ou não
entrar na tabacaria da esquina, ou não trocar os bons dias
com o barbeiro ocioso?

Tudo que nos cerca se torna parte de nós, se nos
infiltra na sensação da carne e da vida, e, baba da grande
Aranha, nos liga subtilmente ao que está perto, enleando-nos
num leito leve de morte lenta, onde baloiçamos ao vento. Tudo é nós,
e nós somos tudo; mas de que serve isto, se tudo é nada? Um
raio de sol, uma nuvem que a sombra subita diz que passa, uma
brisa que se ergue, o silencio que se segue quando ella cessa,
um rosto ou outro, algumas vozes, o riso casual entre ellas
que fallam, e depois a noite onde emergem sem sentido
os hieroglyphos quebrados das estrellas
.