Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-77r)

Vi e ouvi hontem um grande homem


L. do D.

Vi e ouvi hontem um grande homem. Não quero dizer um
grande homem attribuido, mas um grande homem que verdadeira-
mente o é. Tem valia, se a ha neste mundo; conhecem que tem
valia; e elle sabe que o conhecem. Tem, pois, todas as condi-
ções para que eu o chame um grande homem. É, effectivamente,
o que o chamo.

O aspecto physico é de um commerciante cansado.
A cara tem traços de fadiga, mas tanto poderiam ser de pen-
sar de mais como de não viver hygienicamente. Os gestos são
quaesquer. O olhar tem uma certa viveza — privilegio
de quem não é myope. A voz é um pouco embrulhada, como se os
inicios da paralysia geral estragassem essa emissão da alma.
E a alma emittida discursa sobre a politica de partidos, so-
bre a desvalorização do escudo, e sobre o que ha de réles
nos collegas da grandeza.

Se eu não soubesse quem elle é, não o conheceria
pela estampa. Sei bem que não ha que fazer dos grandes homens
aquella idéa heroica que as almas simples formam: que um gran-
de poeta ha de ser um Apollo de corpo e um Napoleão de expres-
são; ou, com menos exigencias, um homem de distincção e um ros-
to expressivo. Sei bem que estas coisas são humanidades natu-
raes e absurdas. Mas, se não se espera tudo ou quasi tudo, es-
pera-se todavia alguma cousa. E, quando se passa da figura vis-
ta para a alma fallada, não ha sem duvida que esperar espirito
ou vivacidade, mas ha ao menos que contar com intelligencia,
com, ao menos, a sombra da elevação.

Tudo isto — estas desillusões humanas — nos faz
pensar no que pode realmente haver de verdade no conceito
vulgar de inspiração. Parece que este corpo destinado a com-
merciante e esta alma destinada a homem educado são, quando
estão a sós, investidos mysteriosamente de qualquer cousa in-
terior que lhes é externa, e que não fallam, senão que se falla
nelles, e a voz diz o que fôra mentira que elles dissessem.

São especulações casuaes e inuteis. Chego a ter pe-
na de as ter. Não diminue com ellas a valia do homem; não aug-
menta com ellas a expressão do seu corpo. Mas, na verdade, nada
altera nada, e o que dizemos ou fazemos roça
só os cimos dos montes, em cujos valles dormem as coisas.