Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-82r)

A maioria da gente enferma


                                    27/7/1930.

L. do D.

A maioria da gente enferma de não sabe[r] dizer o que
vê e o que pensa. Dizem que não ha nada mais difficil
do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem,
fazer no ar, com a mão sem literatura, o gesto, ascendente-
mente enrolado em ordem, com que aquella figura abstracta
das molas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos lem-
bremos que dizer é renovar, definiremos sem difficuldade
uma espiral: é um circulo que sobe sem nunca conseguir a-
cabar-sefechar-se. A maioria da gente, sei
bem, não ousaria definir assim, porque suppõe que definir
é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que
é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral
é um circulo virtual que se
desdobra a subir sem nunca se realizar. Mas não, a de-
finição ainda é abstracta. Buscarei o concreto, e tudo se-
rá visto: uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma.

Toda a literatura consiste num exforço para tor-
nar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem
saber, a vida é absolutamente irreal na sua realidade di-
recta; os campos, as cidades, as idéas, são coisas absolu-
tamente ficticias, filhas da nossa complexa sensação de nós
mesmos. São intransmissiveis todas as impressões salvo se
as tornarmos literarias. As creanças são muito literarias
porque dizem como sentem e não como deve sentir quem sente
segundo outra pessoa. Uma creança, que uma vez ouvi,
disse, querendo dizer que estava á beira de chorar, não
"tenho vontade de chorar", que é como diria um adulto, is-
to é um estupido, senão isto, "Tenho
vontade de lagrimas". E esta phrase, absolutamente litera-
ria, a ponto de que seria affectada num poeta
celebre, se elle a pudesse dizer, refere resolutamente a
presença quente das lagrimas a romper das palpebras cons-
cientes da amargura liquida. (liquefeita). "Tenho vontade
de lagrimas"! Aquella creança pequena definiu bem a sua es-
piral.

Dizer! Saber dizer! Saber existir pela voz escrip-
ta e a imagem intellectual! Tudo isto é quanto a vida vale:
o mais é homens e mulheres, amores suppostos e vaidades fac-
ticias, subterfugios da digestão e do esquecimento, gentes re-
mexendo-se, como bichos quando se levanta uma pedra, sob o
grande pedregulho abstracto do ceu azul sem sentido.