Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-83)

Nunca amamos alguem


                                25/7/1930

L. do D.

Nunca amamos alguem. Amamos, tamsòmente,
a idéa que fazemos de alguem. É a um conceito
nosso em summa é a nos mesmos — que
amamos.

Isto é verdade em toda a escala do amor. No
amor sexual buscamos um prazer nosso dado
por intermedio de um corpo extranho. No
amor differente do sexual, buscamos um
prazer nosso dado por intermedio de uma
idéa nossa. O onanista é abjecto, mas em
exacta verdade, o onanista é a perfeita expressão
logica do amoroso. É o unico que não dis-
farça nem se engana.

As relações entre uma alma e outra, atravez
de coisas tam incertas e divergentes como as
palavras communs e os gestos que se empre-
hendem, são materia de estranha enganada comple-
xidade. No proprio acto em que nos conhe-
cemos, nos desconhecemos. Dizem os dois "amo-
te", ou pensam-o e sentem-o por troca, e
cada um quere dizer uma idéa differente,
uma vida differente, até, porventura,
uma cor ou um aroma differente, na
somma abstracta de impressões que
constitue a actividade da alma.


Estou hoje lucido como se não existisse.
Meu pensamento é em claro como um
esqueleto, sem os trapos carnaes da illusão
de exprimir. E estas considerações,
que formo e abandono, não nasceram de
cousa alguma — de cousa alguma, pelo
menos, que me esteja na plateia da
consciencia. Talvez aquella desillusão do
caixeiro de praça com a rapariga que
tinha, talvez qualquer phrase lida nos
casos amorosos que os jornaes trans-
crevem dos estrangeiros, talvez até
uma vaga nausea que trago com-
migo e me não explico physicamente...

Disse mal o scholiasta de Virgilio. É
de comprehender que sobretudo nos
cansamos. Viver é não pensar.


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