Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-81r)

O olfacto é uma vista estranha


L. do D.

O olfacto é uma vista estranha. Evoca paysagens sentimen-
taes por um desenhar subito do subconsciente. Tenho sentido
isto muitas vezes. Passo numa rua. Não vejo nada, ou, antes,
olhando tudo, vejo como toda a gente vê. Sei que vou
por uma rua e não sei que ella existe com lados feitos de casas
differentes e construidas por gente humana. Passo numa rua. De
uma padaria sahe um cheiro a pão que nauseia por doce no chei-
ro d'elle: e a minha infancia ergue-se de determinado bairro
distante, e outra padaria me surge d'aquelle reino das fa-
das que é tudo que se nos morreu. Passo numa rua. Cheira de
repente ás fructas do taboleiro inclinado da loja estreita;
e a minha breve vida de campo, não sei já quando nem onde, tem
arvores ao fim e socego no meu coração, indiscutivelmente me-
nino. Passo uma rua. Transtorna-me, sem que eu espere, um
cheiro aos caixotes do caixoteiro: ó meu Cesario, appa-
reces-me e eu sou emfim feliz porque regressei, pela recordação,
á unica verdade, que é a literatura.