Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 2-88r)

Quanto mais avançamos na vida


Quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de
duas verdades que todavia se contradizem. A primeira é de que,
perante a realidade da vida, soam pallidas todas as ficções
da literatura e da arte. Dão, é certo, um prazer mais nobre
que os da vida; porém são como os sonhos, em que sentimos
sentimentos que na vida se não sentem, e se conjugam fór-
mas que na vida se não encontram; são comtudo sonhos, de
que se accorda, que não constituem memorias nem saudades,
com que vivamos depois uma segunda vida.

A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre
o percorrer a vida por inteiro, ter experiencia de todas as
coisas, de todos os logares e de todos os sentimentos viví-
dos, e sendo isto impossivel, a vida só subjectivamen-
te pode ser vivida por inteiro, só negada póde ser vivida
na sua substancia total.

Estas duas verdades são irreductiveis uma á outra. O
sabio abster-se-ha de as querer conjugar, e abster-se-
ha tambem de repudiar uma ou outra. Terá comtudo que seguir
uma, saudoso da que não segue; ou repudiar ambas, erguendo-
se acima de si mesmo em um nirvana proprio.

Feliz quem não exige da vida mais do que ella esponta-
neamente lhe dá, guiando-se pelo instincto dos gatos, que
buscam o sol quando ha sol, e o calor, onde quer que esteja,
quando não ha sol. Feliz quem abdica da sua personali-
dade pela imaginação, e se deleita na contemplação das vidas
alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espectaculo externo
de todas as impressões [ alheias ]. Feliz, por fim, esse que ab-
dica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser
tirado nem diminuido.

O camponio, o leitor de novellas, o puro asceta — estes
trez são os felizes da vida, porque são estes trez que abdi-
cam da personalidade — um porque vive do instincto, que é
impessoal, outro porque vive da imaginação, que é esquecimento,
o terceiro porque não vive, e, não tendo morrido, dorme.

Nada me satisfaz, nada me consola, tudo — quer haja si-
do, quer não — me sacia. Não quero ter a alma e não
quero abdicar d'ella. Desejo o que não desejo e abdico do que
não tenho. Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte
de passagem entre o que não tenho e o que não
quero.