Mallet - Usa Jerónimo Pizarro(223)

O relogio que está lá para traz


L. do D.

O relogio que está lá para traz, na casa deserta, porque todos dormem, deixa cahir lentamente o quadruplo som claro das quatro horas de quando é noite. Não dormi ainda, nem espero dormir. Sem que nada me detenha a attenção, e assim não durma, ou me pese no corpo, e porisso não socegue, jazo na sombra, que o luar vago dos candeeiros da rua torna ainda mais desacompanhada, o silencio amortecido do meu corpo extranho. Nem sei pensar, do somno que tenho; nem sei sentir, do somno que não consigo ter.

Tudo em meu torno é o universo nú, abstracto, feito de negações nocturnas. Divido-me em cansado e inquieto, e chego a tocar com a sensação do corpo um conhecimento metaphysico do mysterio das coisas. Por vezes amollece-se-me a alma, e então os pormenores sem fórma da vida quotidiana boiam-se-me á superficie da consciencia, e estou fazendo lançamentos á tona de não poder dormir. Outras vezes, accordo de dentro do meio-somno em que estagnei, e imagens vagas, de um colorido poetico e involuntario, deixam escorrer pela minha desattenção o seu espectaculo sem ruidos. Não tenho os olhos inteiramente cerrados. Orla-me a vista frouxa uma luz que vem de longe; são os candieiros publicos accesos lá em baixo, nos confins abandonados da rua.

Cessar, dormir, substituir esta consciencia intervallada por melhores coisas melancholicas ditas em segredo ao que me desconhecesse!... Cessar, passar fluido e ribeirinho, fluxo e refluxo de um mar vasto, em costas visiveis na noite em que verdadeiramente se dormisse!... Cessar, ser incognito e externo, movimento de ramos em aleas afastadas, tenue cahir de folhas, conhecido no som mais que na queda, mar alto fino dos repuxos ao longe, e todo o indefinido dos parques na noite, perdidos entre emmaranhamentos continuos, labyrinthos naturaes da treva!... Cessar, acabar finalmente, mas com uma sobrevivencia translata, ser a pagina de um livro, a madeixa de um cabello solto, o oscillar da trepadeira ao pé da janella entreaberta, os passos sem importancia no cascalho fino da curva, o ultimo fumo alto da aldeia que adormece, o esquecimento do chicote do carroceiro á beira matutina do caminho... O absurdo, a confusão, o apagamento — tudo que não fosse a vida...

E durmo, a meu modo, sem somno nem repouso, esta vida vegetativa da supposição, e sob as minhas palpebras sem sossego paira, como a espuma calada de um mar sujo, o reflexo longinquo dos candieiros mudos da rua.

Durmo e desdurmo.

Do outro lado de mim, lá para traz de onde jazo, o silencio da casa toca no infinito. Oiço cahir o tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cahe se ouve cahir. Opprime-me physicamente o coração physico a memoria, reduzida a nada, de tudo quanto foi ou fui. Sinto a cabeça materialmente colocada na almofada em que a tenho fazendo valle. A pelle da fronha tem com a minha pelle um contacto de gente na sombra. A propria orelha, sobre a qual me encosto, grava-se-me mathematicamente contra o cerebro. Pestanejo de cansaço, e as minhas pestanas fazem um som pequenissimo, inaudivel, na brancura sensivel da almofada erguida. Respiro, suspirando, e a minha respiração acontece — não é minha. Soffro sem sentir nem pensar. O relogio da casa, logar certo lá ao meio do infinito, sôa a meia-hora secca e nulla. Tudo é tanto, tudo é tam fundo, tudo é tam negro e tam frio!

Passo tempos, passo silencios, mundos sem fórma passam por mim.

Subitamente, como uma creança do Mysterio, um gallo canta sem saber da noite. Posso dormir, porque é manhã em mim. E sinto a minha bocca sorrir, deslocando levemente as pregas molles da fronha que me prende o rosto. Posso deixar-me á vida, posso dormir, posso ignorar-me... E, atravez do somno novo que me escurece, ou lembro o gallo que cantou, ou é elle, de veras, que canta segunda vez.