Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 3-35)

Uma vista breve de campo


                                    15/5/1930.

L. do D.

Uma vista breve de campo, por cima de um muro dos
arredores, liberta-me mais completamente do que uma viagem
inteira libertaria outro. Todo ponto de visão é um apice
de uma pyramide invertida, cuja base é indeterminavel.

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Houve tempo em que me irritavam aquellas cousas que
hoje me fazem sorrir. E uma d'ellas, que quasi todos os dias
me lembram, é a insistencia com que os homens quotidianos
e activos na vida sorriem dos poetas e dos artistas. Nem
sempre o fazem, como crêem os pensadores dos jornaes, com
um ar de superioridade. Muitas vezes o fazem com carinho.
Mas é sempre como quem acarinha uma creança, alguem alheio
á certeza e á exactidão da vida.

Isto irritava-me antigamente, porque suppunha, como
os ingenuos, e eu era ingenuo, que esse sorriso dado ás
preoccupações de sonhar e dizer era um effluvio de uma sen-
sação intima de superioridade. É sòmente um estalido de
differença. E, se antigamente eu considerava esse sor-
riso como um insulto, porque implicasse uma superioridade,
hoje considero-o como uma duvida inconsciente; como os ho-
mens adultos muitas vezes reconhecem nas creanças uma agude-
za de espirito superior á propria, assim nos reconhecem, a
nós que sonhamos e o dizemos, uma qualquer coisa differen-
te de que elles desconfiam como extranha. Quero crer que,
muitas vezes, os mais intelligentes d'elles entrevejam a nos-
sa superioridade; e então sorriem superiormente, para escon-
der que a entrevêem.

Mas essa nossa superioridade não consiste naquillo
que tantos sonhadores teem considerado como a superioridade
propria. O sonhador não é superior ao homem activo porque
o sonho seja superior á realidade. A superioridade do sonha-
dor consiste em que sonhar é muito mais practico que viver,
e em que o sonhador extrahe da vida um prazer muito mais
vasto e muito mais variado do que o homem de acção. Em me-
lhores e mais directas palavras, o sonhador é que é o homem
de acção.

Sendo a vida essencialmente um estado mental, e tudo,
quanto fazemos ou pensamos, valido para nós na proporção
em que o pensamos valido, depende de nós a valorização. O
sonhador é um emissor de notas, e as notas que emitte correm
na cidade do seu espirito do mesmo modo que as da rea-
lidade. Que me importa que o papel-moeda da minha alma nun-
ca seja convertivel em ouro, se não ha ouro nunca na alchimia
facticia da vida? Depois de todos nós vem o diluvio, mas é
só depois de todos nós. Melhores, e mais felizes, os que,
reconhecendo a ficção de tudo, fazem o romance antes que elle
lhes seja feito, e, como Machiavelli, vestem os trajos da
corte para escrever bem em segredo.