Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 3-59r-60r-61r)

O ambiente é a alma das coisas


                                6/4/1930.
L. do D.

O ambiente é a alma das coisas. Cada
coisa tem uma expressão propria, e essa expressão
vem-lhe de fóra.

Cada coisa é a intersecção de trez
linhas, e essas trez linhas formam
essa coisa: uma quantidade
de materia, o modo como interpretamos,
e o ambiente em que está. Esta
mesa, a que estou escrevendo, é um
pedaço de madeira, é uma mesa,
e é um movel entre outros aqui
neste quarto. A minha impressão
d'esta mesa, se a quizer transcrever,
terá que ser composta das noções de
que ella é de madeira, de que eu
chamo áquillo uma mesa e lhe
attribuo certos usos e fins, e de
que nella se reflectem, nella se
inserem, e a transformam, os objectos
em cuja juxtaposição ella tem
alma externa, o que lhe
está posto em cima. E a propria
côr que lhe foi dada, o desbota-
mento d'essa côr, as nodoas e

partidos que tem — tudo isso, repare-se, lhe veio de fóra, e é
isso que, mais que a sua essencia de madeira, lhe dá a alma.
E o intimo d'essa alma, que é o ser mesa, tambem lhe foi dado de fóra,

que é a personalidade.


2

Acho, pois, que não ha erro
humano, nem litterario, em at-
tribuir alma ás cousas que chamamos inani-
madas. Ser uma coisa é ser ob-
jecto de uma attribuição. Pode
ser falso dizer que uma
arvore sente, que um rio "corre",
que um poente é magoado ou
o mar calmo (azul pelo ceu
que não tem) é sorridente (pelo
sol que lhe está fóra). Mas
egual erro é attribuir belleza
a qualquer coisa. Egual erro
é attribuir côr, fórma, por-
ventura até ser, a qualquer
coisa. Este mar é agua sal-
gada. Este poente é começar
a faltar a luz do sol nesta
latitude e longitude. Esta
creança, que brinca deante
de mim, é um amontoado
intellectual de cellulas — mais,
uma reloj(o)aria de movimentos
subatomicos, estranha conglo-
meração electrica de milhões
de systemas solares em minia-
tura minima.


3.

Tudo vem de fóra, e a
mesma alma humana não é
porventura mais que o raio de sol
que brilha e isola do chão onde
jaz o monte de estrume que é
o corpo.

Nestas considerações está
porventura toda uma philo-
sophia, para quem pudesse
ter a força de tirar conclusões.
Não a tenho eu, surgem-me
atentos pensamentos vagos, de
possibilidades logicas, e tudo
se me esbate numa visão
de um raio de sol dourando
estrume como palha escura humidamente
amachucada, no chão quasi
negro ao pé de um muro de pedregulhos.

Assim sou. Quando quero
pensar, vejo. Quando quero
descer na minha alma, fico
de repente parado, esquecido,
no começo do espiral da escada pro-
funda, vendo pela janella do
andar alto o sol que molha
de despedida fulva o agglomerado
diffuso dos telhados.

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