Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 3-64r)

Por mais que pertença


                                            5/4/1930.
L. do D.

Por mais que pertença, por alma, á linhagem dos roman-
ticos, não encontro repouso senão na leitura dos classicos.
A sua mesma estreiteza, atravez da qual a sua clareza se
exprime, me conforta não sei de quê. Colho nelles uma im-
pressão alacre de vida larga, que contempla amplos espaços
sem os percorrer. Os mesmos deuses pagãos repousam do myste-
rio.

A analyse sobrecuriosa das sensações — por vezes das
sensações que suppomos ter —, a identificação do coração com
a paisagem, a revelação anatomica dos nervos todos, o uso
do desejo como vontade e da aspiração como pensamento — to-
das estas coisas me são demasiado familiares para que em ou-
trem me tragam novidade, ou me dêem socego. Sempre que as
sinto, desejaria, exactamente porque as sinto, estar sentin-
do outra coisa. E, quando leio um classico, essa outra cousa
é-me dada.

Confesso-o sem rebuço nem vergonha... Não ha trecho
de Chateaubriand ou canto de Lamartine — trechos que tantas
vezes parecem ser a voz do que eu penso, cantos que tanta
vez parecem ser-me ditos para conhecer — que me enleve e me
erga como um trecho de prosa de Vieira ou uma ou outra ode
d'aquelles nossos poucos classicos que seguiram deveras a
Horacio.

Leio e estou liberto. Adquiro objectividade. Deixei de
ser eu e disperso. E o que leio, em vez de ser um trajo meu
que mal vejo e por vezes me pesa, é a grande clareza
do mundo externo, toda ella notavel, o sol que vê todos, a lua que
malha de sombras o chão quieto, os espaços largos que
acabam em mar, a solidez negra das arvores que acenam verdes
em cima, a paz solida dos tanques das quintas, os caminhos
tapados pelas vinhas parreiras, nos declives breves das encostas.

Leio como quem abdica. E, como a coroa e o manto regios
nunca são tam grandes como quando o Rei que parte os deixa
no chão, deponho sobre os mosaicos das antecamaras todos os
meus triumphaes do tedio e do sonho, e subo a escadaria com
a unica nobreza de ver nobreza unica de olhar.

Leio como quem passa. E é nos classicos, nos calmos, nos
que, se soffrem, o não dizem, que me sinto sagrado transeun-
te, ungido peregrino, contemplador sem razão do mun-
do sem proposito, Principe do Grande Exilio, que deu, partin-
do-se, ao ultimo mendigo, a esmola extrema da obolo restante como obolo restante a sua desolação.