Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 3-67r)

Sinto-me às vezes tocado


L. do D.

Sinto-me às vezes tocado, não sei porquê, de um
prenuncio de morte. Ou seja uma vaga doença, que se não ma-
terializa em dor e porisso tende a espiritualizar-se em fim,
ou seja um cansaço que quer um somno tam profundo que o dor-
mir lhe não basta — o certo é que sinto como se, no fim de
um peorar de doente, por fim largasse sem violencia ou sau-
dade as mãos debeis de sobre a colcha sentida.

Considero então que coisa é esta a que chamamos
morte. Não quero dizer o mysterio da morte,
que não penetro, mas a sensação physica de cessar de viver.
A humanidade tem medo da morte, mas incertamente; o homem
normal bate-se bem em exercito, o homem normal, doente ou
velho, raras vezes olha com horror o abysmo do nada que elle
attribue a esse abysmo. Tudo isso é falta de imaginação.
Nem ha nada menos de quem pensa que suppôr a morte um somno.
Porque o ha de ser se a morte se não assemelha ao somno?
O essencial do somno é o accordar-se d'elle, e da morte, sup-
pomos, não se accorda. E se a morte se assemelha
ao somno, deveremos ter a noção de que se accorda d'ella.
Não é isso, porém, o que o homem normal se figura: figura
para si a morte como um somno de que não se accorda, o que
nada quere dizer. A morte, disse, não se assemelha ao somno,
pois no somno se está vivo e dormindo; nem sei como póde al-
guem assemelhar a morte a qualquer coisa, pois não póde ter
experiencia d'ella, ou coisa com que a comparar.

A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me
uma partida. O cadaver dá-me a impressão de um trajo que se
deixou. Alguem se foi embora e não precisou de levar aquelle
fato unico que vestira (vestia).