Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 3-65r)

A sensação da convalescença


L. do D.

A sensação da convalescença, sobretudo se
se fez mal sentir sentir nos nervos no pensamento a doença que a precedeu, tem qualquer
coisa de alegria triste. Ha um outomno nas emoções e nos
pensamentos, ou, antes, um d'aquelles principios de pri-
mavera que, salvo que não cahem folhas, parecem, no ar
e no céu, o outomno.

O cansaço sabe bem, e o bem que sabe
doe um pouco. Senti-mo-nos um pouco àparte da vida, ainda
que nella, como que na varanda da casa de viver. Estamos
contemplativos sem pensar, sentimos sem emoção definivel.
A vontade socega, pois não ha necessidade d'ella.

É então que certas memorias, certas esperan-
ças, certos vagos desejos sobem lentamente a rampa da
consciencia, como caminheiros vagos vistos do alto do mon-
te. Memorias de coisas futeis, esperanças de coisas que
não fez mal que não fôssem, desejos que não tiveram vio-
lencia de natureza ou de emissão, que nunca puderam que-
rer ser.

Quando o dia se ajusta a estas sensações,
como hoje, que, ainda que estio, está meio nublado com
azues, e um vago vento por não ser quente é quasi frio, então aquelle estado da
alma se accentua em que pensamos, sentimos, vivemos es-
tas impressões. Não que sejam mais claras as memorias,
as esperanças, os desejos que tinhamos. Mas sen-
te-se mais, e a sua somma incerta pesa um pouco, absurda-
mente, sobre o coração.

Ha qualquer coisa de longinquo em mim neste
momento. Estou de facto à varanda da vida, mas não é bem
d'esta vida. Estou por sobre ella, e vendo-a de onde vejo.
Jaz deante de mim, descendo em socalcos e resvalamentos,
como uma duma paisagem diversa, até aos fumos sobre casas bran-
cas das de aldeias do valle. Se cerrar os olhos, continúo
vendo, poisque não vejo. Se os abrir nada mais vejo, pois-
que não via. Sou todo eu uma vaga saudade, nem do passado,
nem do futuro: sou uma saudade do presente, anonyma , prolixa e
in comprehendida.

                                        16/7/1932.