Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 3-71r)

Doem-me a cabeça e o universo


                                        5/2/1932


L. do D.

Doem-me a cabeça e o universo. As dores physi-
cas, mais nitidamente dores que as moraes desinvolvem, por
um reflexo no espirito, tragedias incontidas nellas. Tra-
zem uma impaciencia de tudo que, como é de tudo, não exclue
nenhuma das estrellas.

Não commungo, não communguei nunca, não poderei, sup-
ponho, alguma vez commungar aquelle conceito bastardo pelo
qual somos, como almas, consequencias de uma coisa material
chamada cerebro, que existe, por nascença condição, dentro de outra
coisa material chamada craneo. Não posso ser materialista,
que é o que, creio, se chama aquelle conceito, porque não
posso estabelecer uma relação nitida — uma relação visual vizualizavel,
direi — entre uma massa visivel de materia cinzenta, ou de
outra côr qualquer, e esta coisa eu que por traz do meu olhar
vê os céus e os pensa, e imagina céus que não existem. Mas,
ainda que nunca possa cahir no abysmo de suppor que uma coi-
sa possa ser outra só porque estão no mesmo logar, como uma
parede e a minha sombra nella, ou que
depender a alma do cerebro seja mais que depender eu, para
o meu trajecto, do vehiculo em que vou, creio, todavia, que
ha entre o que em nós é só espirito e o que em nós é espirito
do corpo uma relação de convivio em que podem surgir discus-
sões. E a que surge vulgarmente é a de a pessoa mais ordina-
ria incommodar a que o é menos.

Doe-me a cabeça hoje, e é talvez do estomago que me doe.
Mas a dor, uma vez suggerida do
estomago á cabeça, vae interromper as meditações que tenho
por traz de ter cerebro. Quem me tapa os olhos não me cega,
porém impede-me de ver. E assim agora, porque me doe a cabe-
ça, acho sem valia nem nobreza o espectaculo, neste momento
monotono e absurdo, do que ahi fóra mal quero ver como mundo.
Doe-me a cabeça, e isto quere dizer, que tenho consciencia
de uma offensa que a materia me faz, e que, porque, como to-
das as offensas, me indigna, me predispõe para estar mal com
toda a gente, incluindo a que está proxima porém me não of-
fendeu.

O meu desejo é de morrer, pelo menos temporariamente,
mas isto, como disse, só porque me doe a cabeça. E neste mo-
mento, de repente, lembra-me com que melhor nobreza um dos
grandes prosadores diria isto. Desenrolaria, periodo a perio-
do, magua anonyma do mundo; aos seus
olhos imaginadores de paragraphos surgiriam, diversos, os
dramas humanos que ha na terra, e atravez do latejar das
fontes febris erguer-se-hia no papel toda uma metaphysica da
desgraça. Eu, porém, não tenho nobreza estylistica. Doe-me
a cabeça porque me doe a cabeça. Doe-me o universo porque a
cabeça me doe. Mas o universo que realmente me doe não é o verdadeiro, o
que existe porque não sabe que existo, mas aquelle, meu de mim,
que, se eu passar as mãos pelos cabellos, me faz parecer sentir que
elles soffrem todos só para me fazerem soffrer.