Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 3-73r)

Não sei o que é o tempo


L. do D.

Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira
medida que elle tem, se tem alguma. A do relogio sei que é
falsa: divide o tempo espacialmente, por fóra. A das emoções
sei tambem que é falsa: divide, não o tempo, mas a sensação
d'elle. A dos sonhos é errada; nelles roçamos o tempo, uma
vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é
apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer
cuja natureza ignoro.

Julgo, ás vezes, que tudo é falso, e que o tempo não
é mais que uma moldura para enquadrar o que lhe é extranho.
Na recordação, que tenho da minha vida passada, os tem-
pos estão dispostos em niveis e planos absurdos, sendo eu
mais jovem em certo episodio dos quinze annos solemnes que em outro
da infancia sentada entre brinquedos.

Emmaranha-se-me a consciencia se penso nestas coi-
sas. Presinto um erro em tudo isto; não sei, porém, de que
lado está. É como se assistisse a uma sorte de prestidigita-
ção, onde, por ser tal, me soubesse enganado, porém não con-
cebesse qual a technica, ou a mechanica, do engano.

Chegam-me, então, pensamentos absurdos, que não con-
sigo todavia repellir como absurdos de todo. Penso se um homem
que medita devagar dentro de um carro que segue depressa es-
tá indo depressa ou devagar. Penso se se-
rão eguaes as velocidades identicas com que cahem no mar o
suicida e o que se desequilibrou na esplanada. Penso se são
realmente synchronicos os movimentos, que occupam o mesmo
tempo, em os quaes fumo um cigarro, escrevo este trecho e
penso obscuramente.

De duas rodas no mesmo eixo podemos pensar que ha
sempre uma que estará mais adeante, ainda que seja fracções
de millimetro . Um microscopio exaggeraria este deslocamento
até o tornar quasi inacreditavel, impossivel se
não fôsse real. E porque não ha o microscopio de ter razão
contra a má vista? São considerações inuteis? Bem o sei.
São illusões da consideração? Concedo. Que coisa, porém, é
esta que nos mede sem medida e nos mata sem ser? E é nestes
momentos, em que nem sei se o tempo existe, que o sinto como
uma pessoa, e tenho vontade de dormir.

                                                23/5/1932.