Edição do Arquivo LdoD - Usa (Descobrimento, nº 3)

Sim, é o poente


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Sim, é o poente. Chego à foz da Rua da Alfândega, vaga-
roso e disperso, e, ao clarear-me o Terreiro do Paço, vejo ní-
tido o sem sol do céu ocidental. Êsse céu é de um azul esver-
deado para cinzento branco, onde, do lado esquerdo, sôbre os
montes da outra margem, se agacha, amontoada, uma névoa
acastanhada de côr de rosa morto. Há uma grande paz que
não tenho dispersa friamente no ar outonal abstracto. Sofro de
a não ter o prazer vago de supor que ela existe. Mas, na rea-
lidade, não há paz nem falta de paz: céu apenas, céu de tôdas
as côres que desmaiam — azul branco, verde ainda azulado,
cinzento pálido entre verde e azul, vagos tons remotos de côres
de nuvens que o não são, amareladamente escurecidas de en-
carnado findo. E tudo isto é uma visão que se extingue no
mesmo momento em que é tida, um intervalo entre nada e
nada, alado, posto alto, em tonalidades de céu e mágua, prolixo
e indefinido.

Sinto e esqueço. Uma saüdade, que é a de tôda a gente por
tudo, invade-me como um opio do ar frio. Há em mim um êxtase
de ver, íntimo e postiço.

Para os lados da barra, onde o ter cessado o sol cada vez
mais se acaba, a luz extingue-se em branco lívido que se azula
de esverdeado frio. Há no ar um torpor do que se não consegue
nunca. Cala alto a paisagem do céu.


Nesta hora, em que sinto até transbordar, quizera ter a ma-
lícia inteira de dizer, o capricho livre de um estilo por destino.
Mas não, só o céu alto é tudo, remoto, abolindo-se, e a emoção
que tenho, e que é tantas, juntas e confusas, não é mais que o
reflexo dêsse céu nulo num lago em mim — lago recluso entre
rochedos hirtos, calado, olhar de morto, em que a altura se
contempla, esquecida.

Tantas vezes, tantas, como agora, me tem pesado sentir que
sinto — sentir como angústia só por ser sentir, a inquietação de
estar aqui, a saüdade de outra coisa que se não conheceu, o
poente de tôdas as emoções, amarelecer-me esbatido para tris-
teza cinzenta na minha consciência externa de mim.

Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero,
nem a vida: é aquela outra coisa que brilha no fundo da ância
como um diamante possível numa cova a que se não pode des-
cer. É todo o pêso e tôda a mágua dêste universo real e im-
possível, dêste céu estandarte de um exército incógnito, dêstes
tons que vão empalidecendo pelo ar fictício, de onde o crescente
imaginário da lua emerge numa brancura eléctrica parada, re-
cortado a longínquo e a insensível.

É tôda a falta de um Deus verdadeiro que é o cadáver vácuo
do céu alto e da alma fechada. Cárcere infinito — porque és
infinito, não se pode fugir de ti!