Estou quasi convencido de que nunca estou disperto


L. do D.

Estou quasi convencido de que nunca estou dis-
perto. Não sei se não sonho quando vivo, se não vivo quan-
do sonho, ou se o sonho e a vida não são em mim coisas mix-
tas, interseccionadas, de que meu ser consciente se forme
por interpenetração.

Ás vezes, em plena vida activa, em que, evidente-
mente, estou tam claro de mim como todos os outros,
vem até á minha supposição uma sensação extranha de duvida;
não sei se existo, sinto possivel o ser um sonho de outrem,
affigura-se-me, quasi carnalmente, que poderei ser persona-
gem de uma novella, movendo-me, nas ondas longas de um esty-
lo, na verdade feita de uma grande narrativa.

Tenho reparado, muitas vezes, que certas persona-
gens de romance tomam para nós um relevo que nunca poderiam
alcançar os que são nossos conhecidos e amigos, os que fal-
lam comnosco e nos ouvem, na vida visivel e real. E isto faz
com que sonhe a pergunta se não será tudo neste total de mun-
do uma série entre-inserta de sonhos e romances, como caixi-
nhas dentro de caixinhas maiores — umas dentro de outras e
estas em mais —, sendo tudo uma historia com historias, como
as Mil e Uma Noites, decorrendo falsa na noite eterna.

Se penso, tudo me parece absurdo; se sinto, tudo
me parece extranho; se quero, o que quere é qualquer coisa
em mim. Sempre que em mim ha acção, reconheço que não fui
eu. Se sonho, parece que me escrevem. Se sinto, parece que
me pintam. Se quero, parece que me põe num vehiculo, como a
mercadoria que se envia, e que sigo com um movimento que
julgo proprio para onde não quiz que fosse senão de-
pois de lá estar.

Que confusão é tudo! Como ver é melhor que pensar,
e ler melhor que escrever! O que vejo, pode ser que me en-
gane, porém não o julgo meu. O que leio, póde ser que me pese,
mas não me perturba o tel-o escripto. Como tudo doe se o pen-
samos como conscientes de pensar, como seres espirituaes em
quem se deu aquelle segundo desdobramento da consciencia pe-
lo qual sabemos que sabemos! Embora o dia esteja lindissimo,
não posso deixar de pensar assim... Pensar ou sentir, ou que
coisa terceira entre os scenarios postos de parte? Tedios do
crepusculo e do desalinho, leques fechados, cansaço de ter
tido que viver...

                                        20/12/1931.



Identificação: bn-acpc-e-e3-4-1-87_0045_23_t24-C-R0150 | bn-acpc-e-e3-4-1-87_0046_23v_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (28.5cm X 22.6cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Com marca LdoD
Datiloscrito (violet-ink) : Testemunho datiloscrito a tinta roxa.
Data: 20-12-1931
Nota: LdoD, Texto escrito no recto de uma folha inteira de uma carta comercial. No canto inferior direito encontramos a referência "Form. W. 312. / Wallins A-B". No verso lê-se uma tradução para inglês de uma carta comercial, datilografada a preto, na qual um agricultor agradece e se mostra muito satisfeito com a compra de um trator agrícola. A carta tem a data de 29 de outubro de 1925. Terá como origem a cidade de Burgas na Bulgária. Este testemunho (4-23v - dact.) é transcrito por Jerónimo Pizarro como anexo ao texto 347 (2010: 900-901).
Fac-símiles: BNP/E3, 4-23.1 , BNP/E3, 4-23.2