Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 4-30)

Como ha quem trabalhe de tedio


Livro do Desasocego.

Como ha quem trabalhe de tedio, escrevo, por vezes,
de não ter que dizer. O devaneio, em que naturalmente
se perde quem não pensa, perco-me eu nelle por escripto,
pois sei sonhar em prosa. E ha muito sentimento since-
ro, muita emoção legitima, que tiro de não estar sentin-
do.

Ha momentos em que a vacuidade de se sentir viver
attinge a espessura de uma coisa positiva. Nos grandes
homens de acção, que são os santos, pois que agem com
a emoção inteira e não só com parte d'ella, este senti-
mento de a vida não ser nada conduz ao infinito. Engri-
naldam-se de noite e de astros, ungem-se de silencio e
de solidão. Nos grandes ho-
mens de inacção, a cujo numero humildemente pertenço,
o mesmo sentimento conduz ao infinitesimal; puxam-se as
sensações, como elasticos, para ver os poros da sua
falsa continuidade bamba.

E uns e outros, nestes momentos, amam o somno, como
o homem vulgar que nem age nem não age, mero reflexo
da existencia generica da especie humana. Somno é a fu-
são com Deus, o Nirvana, seja elle em definições o que
fôr; somno é a analyse lenta das sensações, seja ella
usada como uma sciencia atomica da alma, seja ella dormida
como uma musica da vontade, anagramma lento da mo-
notonia.

Escrevo demorando-me nas palavras, como por montras
onde não vejo, e são meios-sentidos, quasi-expressões
o que me fica, como cores de estofos que não vi
o que são, harmonias exhibidas compostas de não sei que
objectos. Escrevo embalando-me, como uma mãe louca a um
filho morto.

Encontrei-me neste mundo certo dia, que não sei qual
foi, e até alli, desde que evidentemente nascera, tinha
vivido sem sentir. Se perguntei onde estava,
todos me enganaram, e todos se contradiziam. Se pedi que
me dissessem o que faria, todos me fallaram falso, e ca-
da um me disse uma cousa sua. Se, de não saber, parei
no caminho, todos pasmaram que eu não seguisse para onde
ninguem sabia o que estava, ou não voltasse para traz —
eu, que, disperto na encruzilhada, não sabia de
onde viera. Vi que estava em scena e não sabia o papel
que os outros diziam logo, sem o saberem tambem. Vi
que estava vestido de pagem, e não me deram a rainha,
culpando-me de a não ter. Vi que tinha nas mãos a mensa-
gem que entregar, e quando lhes disse que o papel esta-
va branco, riram-se de mim. E ainda não sei se riram
porque todos os papeis estão brancos, ou porque to-
das as mensagens se adivinham.


                            (2)


Por fim sentei-me na pedra da encruzilhada como á
lareira que me faltou. E comecei, a sós commigo, a fazer
barcos de papel com a mentira que me haviam dado. Ninguem
me quiz acreditar, nem por mentiroso, e não tinha lago
com que provasse a minha verdade.

Palavras ociosas, perdidas, metaphoras soltas, que
uma vaga angustia encadeia a sombras... Vestigios de
melhores horas, vividas não sei onde em aleas... Lam-
pada apagada cujo ouro brilha no escuro pela memoria
da extincta luz... Palavras dadas, não ao vento, mas ao
chão, deixadas ir dos dedos sem aperto, como folhas
seccas que nelles houvessem cahido de uma arvore invi-
sivelmente infinita... Saudade dos tanques das quintas
alheias... Ternura do nunca succedido...

Viver! Viver! E a suspeitar ao menos, se accaso,
no horto de Proserpina haveria
que bem de
dormir.


                                    10/3/1931.