De suave e aerea a hora era uma ara onde orar


De suave e aerea a hora era uma ara onde orar. Por certo que no horoscopo do nosso encontro beneficos conjunctos culminavam. Tal, tão sedosa e tão subtil, a materia incerta de sonho visto que se intromettia na nossa consciencia de sentir. Cessara por completo, como um verão qualquer, a nossa noção acida de que não vale a pena viver. Renascia aquella primavera que, embora por erro, podiamos pensar que houvessemos tido. No desprestigio das nossas semelhanças os tanques lamentavam-se da mesma maneira, entre arvores, e as rosas nos canteiros descobertos, e a melodia indefinida de viver — tudo irresponsavelmente.

Não vale a pena pressentir nem conhecer. Todo o futuro é uma nevoa que nos cerca e amanhã sabe a hoje quando se entrevê. Meus destinos os palhaços que a caravana abandonou, e isto sem melhor luar que o luar nas estradas, nem outros estremecimentos nas folhas que a brisa, e a incerteza da hora e o nosso julgar alli estremecimentos. Purpuras distantes, sombras fugidias, o sonho sempre incompleto e não crendo que a morte o complete, raios de sol mortiço, a lampada da casa na encosta, a noite angustiosa, o perfume a morte entre livros só, com a vida lá fóra, arvores cheirando a verdes na immensa noite mais estrellada do outro lado do monte. Assim as tuas agruras tiveram o seu consorcio benigno; as tuas poucas palavras sagraram de regio o embarque, não voltaram nunca naus nenhumas, nem as verdadeiras, e o fumo de viver despiu os contornos de tudo deixando só as sombras, e os engastes, maguas das aguas nos lagos aziagos entre buxos por portões (a vista de longe) Watteau, a angustia, e nunca mais. Millenios, só os de vires, mas a estrada não tem curva, e porisso nunca poderás chegar. Taças só para as cicutas inevitaveis — não as tuas, mas a vida de todos, e mesmo os lampeões, os recessos, as azas vagas, ouvidas só, e com o pensamento, na noite inquieta, suffocada, que minuto a minuto se ergue de si e avança pela sua angustia fóra. Amarello, verde-negro, azul-amôr — tudo morto, minha ama, tudo morto, e todos os navios aquelle navio sem partir! Resa por mim, e Deus talvez exista por ser por mim que resas. Baixinho, a fonte longe, a vida incerta, o fumo acabando no casal onde anoitece, a memoria turva, o rio afastado... Dá-me que eu durma, dá-me que eu me esqueça, senhora dos Designios Incertos, Mãe das Caricias e das Bençãos inconciliaveis com eu existir...


Título: De suave e aerea a hora era uma ara onde orar
Heterónimo: Não atribuído
Número: 128
Página: 133
Data: 1916 (medium)
Nota: [8-13r];