NOSSA SENHORA DO SILÊNCIO | E se acaso falo com alguém


E se acaso falo com alguém longínquo, e se, hoje nuvem de possível, amanhã caíres, chuva de real sobre a terra, não te esqueças nunca da tua divindade original de sonho meu. Sê sempre na vida aquilo que possa ser o sonho de um isolado e nunca o abrigo de um amoroso. Faz o teu dever de mera taça. Cumpre o teu mister de ânfora inútil. Ninguém diga de ti o que a alma do rio pode dizer das margens — que existem para o limitar. Antes não correr na vida, antes secar de sonhar.

Que o teu génio seja o ser supérfula, e a tua vida a arte de olhares para ela, de seres a olhada, a nunca idêntica. Não sejas nunca mais nada.

Hoje és apenas o perfil criado deste livro, uma hora carnalizada e separada das outras horas. Se eu tivesse a certeza de que o eras, ergueria uma religião sobre o sonho de amar-te.

És o que falta a tudo. És o que a cada coisa falta para a podermos amar sempre. Chave perdida das portas do Templo, caminho encoberto encoberto do Palácio, Ilha longínqua que a bruma nunca deixa ver...


Título: NOSSA SENHORA DO SILÊNCIO | E se acaso falo com alguém
Heterónimo: Bernardo Soares
Número: 501-g
Página: 467 - 468
Nota: [4-72, ms.];Richard Zenith edita este texto como parte d'O Grande Trecho 'NOSSA SENHORA DO SILÊNCIO' (2012: 462-468).;