Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 5-25-26)

Visto que talvez nem tudo seja falso


Visto que talvez nem tudo seja falso, que nada, ó meu
amôr, nos cure do prazer quasi-espasmo de mentir.

Requinte ultimo! Perversão maxima! A
mentira absurda tem todo o encanto do perverso
com o ultimo e maior encanto de ser inno-
cente. A perversão de proposito innocente —
quem excederá, ó          , o requinte maximo
d'isto? A perversão que nem aspira a dar-nos
goso, que nem tem a furia de nos causar dôr,
que cahe para o chão entre o a prazer dôr e e a o dôr prazer,
inutil e absurda como um brinquedo mal-feito
com que um adulto quizesse divertir-se!



Não conheces, ó Deliciosa, o prazer de comprar
cousas que não são precisas? Sabes o sabôr aos
caminhos que, se os tomassemos esquecidos distrahidos, era por erro
que os tomariamos? Que acto humano tem
uma côr tão bella como os actos espurios —
          que mentem á sua propria natureza e
desmentem o que lhes é a intenção?


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A sublimidade de desperdiçar uma vida que
podia ser util, de nunca executar uma obra
que por força seria bella, de abandonar a
meio-caminho a estrada certa da victoria!

Ah, meu amôr, a gloria das obras que
se perderam e nunca se acharão, dos
tratados que são titulos apenas hoje, das bi-
bliothecas que arderam, das estatuas que fôram
partidas.

Que santificados do Absurdo os artistas
que queimaram uma obra muito bella,
d'aquelles que, podendo fazer uma obra bella,
de proposito a fizeram imperfeita, d'aquelles
poetas maximos do Silencio que, reconhecendo
que poderiam fazer obra de todo per-
feita, preferiram coroal-a de nunca a
fazer. (Se fôra imperfeita, vá.)

Quão mais bella a a Giocconda desde que a
não pudessemos vêr! E se quem a roubasse a
queimasse, quão artista seria, que maior
artista que aquelle que a pintou!

Porque é bella a arte? Porque é inútil.
Porque é feia a vida? Porque é toda fins e
propositos e intenções. Todos os seus ca-
minhos são para ir de um ponto para o
outro. Quem nos dera o caminho feito de um
logar d'onde ninguem parte para um logar pa-
ra onde ninguem vae! Quem desse a sua


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vida a construir uma estrada começando no
meio de um campo e indo ter ao meio
de um outro; que, prolongada, seria util,
mas que ficou, sublimemente, só o meio
de uma estrada.

A belleza das ruinas? O não servirem
já para nada.

A doçura do passado? O recordal-o,
porque recordal-o é tornal-o presente,
e elle nem o é, nem o pode ser — o
absurdo, meu amôr, o absurdo.


E eu que digo isto — porque escrevo eu este
livro? Porque o reconheço imperfeito. Sonhado
seria a perfeição; escrito, imperfeiçoa-se; por-
isso o escrevo.

E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo,
            — eu escrevo este livro para men-
tir a mim proprio, para trahir a minha propria
theoria.

E a suprema gloria d'isto tudo, meu amôr, é
pensar que talvez isto não seja verdade, nem eu
o creia verdadeiro.
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                                15-V-1913.
Ella canta e as suas notas soltas tecem
Penumbras de sentir no             ar...
Em torno as cousas todas entristecem,
───────────────────────── adormecem
───────────────────────── anoitecem
Só para que ella lhes possa ser luar.

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Ó alma derramando-se invisivel,
Ó natural requinte da expressão...
Rio de som em tua agua
Vae boiando em silencio       e insensivel
E desbruça-se a vel-o o inextinguivel
/Esforço de ser subir perfeito de imperfeição./

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/Azas de borboletas de só-spirito/
Volteiam       em torno dos sons
Que a tua voz em espiraes




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E quando a mentira comece a dar-nos
prazer, fallemos a verdade para lhe mentirmos.
E quando nos cause angustia, paremos, para
que o soffrimento nos não dignifique ou perversamente praza...