Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 5-59r)

Sabendo como as cousas mais pequenas


L. do D.

Sabendo como as cousas mais pequenas
teem com facilidade a arte de me torturar,
de proposito me esquivo ao toque das cousas
mais pequenas. Quem, como eu, soffre porque
uma nuvem passa deante do sol, como
não ha de soffrer no escuro do dia sempre
encoberto da sua vida?

O meu isolamento não é uma busca
de felicidade, que não tenho alma para
conseguir; nem de tranquillidade, que
ninguem obtem senão quando nunca a perdeu,
mas de somno, de apagamento, de
renuncia pequena.

As quatro paredes do meu quarto pobre
são me, ao mesmo tempo, cella
e distancia, cama e caixão. As minhas
horas mais felizes são aquellas em que
não penso nada, não quero nada, não
sonho sequer, perdido num torpor de
vegetal errado, de mero musgo que
crescesse na superficie da vida. Goso
sem amargor a consciencia absurda de não
ser nada, o antesabor da morte e do
                  apagamento.


      2

     

Nunca tive alguem a quem pudesse
chamar "Mestre". Não morreu por mim
nenhum Christo. Nenhum Buddha me
indicou um caminho. No alto dos meus
sonhos nenhum Apollo ou Athena me
appareceu, para que me illuminasse
a alma.

                          13-1-1920

Aos deuses uma cousa se agradeça:
O somno. A vida esqueça
Já que não pode nunca ser feliz.
Porisso, com um rito definido
Encostemos a fronte ao travesseiro
E deponhamos como ante um juiz
O nosso anseio derradeiro.

Sim, o somno, o socego, o não ser nada,
A morte sempre ansiada
Cruzada um momento sem razão
No socego da fronte que repousa
Alheia a toda a cousa.
O apagamento, bem ou mal, de tudo.