Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 5-60)

Onde está Deus


        L. do D

Onde está Deus, mesmo que
não exista? Quero rezar
e chorar, arrepender-me de
crimes que não cometti,
gosar ser perdoado como
uma caricia não propria-
mente materna.

Um regaço para chorar,
mas um regaço enorme, sem
forma, espaçoso como uma
noite de verão, e comtudo
proximo, quente, feminino, ao
pé de uma lareira qualquér...
Poder alli chorar cousas im-
pensaveis, fallencias que nem
sei quaes são, ternuras de
cousas inexistentes, e grandes
duvidas arripiadas de não sei
que futuro...

Uma infancia nova, uma
ama velha outra vez, e
um leito pequeno onde acabar
por dormir, entre contos que
emballam, mal ouvidos, com uma
attenção que se torna morna,
os perigos que penetravam
em jóvens cabellos louros como
o trigo ouro... E tudo isto muito
grande, muito eterno, definitivo
para sempre, da estatura unica
de Deus, lá no fundo triste
e somnolento da realidade
ultima das Cousas...

Um collo ou um berço ou
um braço quente em torno ao meu
pescoço... Uma voz que canta
baixo e parece querer fazer-me chorar...
O ruido de lume na lareira... Um
calôr no inverno... Um extravio morno molle
da minha consciencia... E depois sem som, um
sonho calmo n'um espaço enorme, como a lua
rodando entre estrellas...


        ─────

Quando ponho de parte os
meus artificios e arrumo a um
canto, com um cuidado cheio
de carinho, — com vontade de lhes
dar beijos — os meus brinquedos,
as palavras, as imagens, as
phrases — fico tão pequeno e
inoffensivo, tão só n'um quarto
tão grande, e tão triste, tão profunda-
mente triste! ...

Afinal eu quem sou, quando não
brinco? Um pobre orphão abandonado
nas ruas das Sensações, tiritando de
frio ás esquinas da Realidade, tendo
que dormir nos degraus da Tristeza
e comer o pão dado da Phantasia.
De meu pae sei o nome; disseram-me
que se chamava Deus, mas o nome
não me dá idea de nada. Ás vezes,
na noite, quando me sinto só, chamo
por elle e chóro, e faço-me uma
idéa d'elle a que possa amar...
Mas depois penso que o não conheço,
que talvez elle não seja assim, que
talvez não seja nunca esse o
pae da minha alma...

Quando acabará isto tudo, estas
ruas onde arrasto a minha miseria, e
estes degraus onde encolho o meu frio
e sinto as maõs da noite por entre os meus
farrapos?... Se um dia Deus me
viesse buscar e me levasse para sua
casa e me desse calôr e affeição...
Ás vezes penso isto e chóro com alegria
a pensar que o posso pensar... Mas
o vento arrasta-se pela rua fóra
e as folhas cahem no passeio... Ergo os
olhos e vejo as estrellas que não teem sentido
nenhum... E de tudo isto fico a-
penas eu, uma pobre creança abandonada,
que nenhum Amôr quiz para seu filho
adoptivo, nem nenhuma Amizade para seu
companheiro de brinquedos.

Tenho frio demais. Estou tão cançado no meu abandono. Vae buscar, ó Vento, a minha Mãe. Leva-me na Noite para
a casa que não conheci... Torna a dar-me ó Silencio immenso, a minha ama e o meu berço e a minha canção com que eu dormia...