Mallet - Usa Jerónimo Pizarro(502)

Quantas coisas


L. do D. (ou Teive?)

Quantas coisas, que temos por certas ou justas, não são mais que os vestigios dos nossos sonhos, o somnambulismo da nossa incomprehensão! Sabe acaso alguem o que é certo ou justo? Quantas coisas, que temos por bellas, não são mais que o uso da epocha, a ficção do logar e da hora! Quantas coisas, que temos por nossas, não são mais que aquillo de que somos perfeitos espelhos, ou envolucros transparentes, alheios no sangue á raça da sua natureza!

Quanto mais medito na capacidade, que temos de nos enganar, mais se me esvahe entre os dedos lassos a areia fina das certezas desfeitas. E todo o mundo me surge, em momentos em que a meditação se me torna um sentimento, e com isso a mente se me obnubila, como uma nevoa feita de sombra, um crepusculo dos angulos e das arestas, uma ficção do interludio, uma demora da antemanhã. Tudo se me transforma em um absoluto morto de elle mesmo, numa estagnação de pormenores. E os mesmos sentidos, com que transfiro a meditação para esquecel-a, são uma especie de somno, qualquer coisa de remoto e de sequaz, intersticio, differença, acaso das sombras e da confusão.

Nesses momentos, em que comprehenderia os ascetas e os retirados, se houvesse em mim poder de comprehender os que se empenham em qualquer exforço com fins absolutos, ou em qualquer crença capaz de produzir um exforço, eu crearia, se pudesse, toda uma esthetica da desconsolação, uma rhythmica intima de ballada de berço, coada pelas ternuras da noite em grandes afastamentos de outros lares.

Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de porque se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e o outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um lado differente. Não: cada um via as coisas exactamente como se haviam passado, cada um as via com um criterio identico ao do outro, mas cada um via uma coisa differente, e cada um, portanto, tinha razão.

Fiquei confuso d'esta dupla existencia da verdade.