Mesmo que eu quisesse criar


Mesmo que eu quisesse criar, ☐

A única arte verdadeira é a da construção. Mas o meio moderno torna impossível o aparecimento de qualidades de construção no espírito.

Por isso se desenvolveu a ciência. A única coisa em que há construção, hoje, é uma máquina; o único argumento em que há encadeamento o de uma demonstração matemática.

O poder de criar precisa de ponto de apoio, da muleta da realidade.

A arte é uma ciência...

Sofre ritmicamente.

Não posso ler, porque a minha crítica hiperacesa não descortina senão defeitos, imperfeições, possibilidades de melhor. Não posso sonhar, porque sinto o sonho tão vivamente que o comparo com a realidade, de modo que sinto logo que ele não é real; e assim o seu valor desaparece. Não posso entreter-me na contemplação inocente das coisas e dos homens, porque a ânsia de a aprofundar é inevitável, e, desde que o meu interesse não pode existir sem ela, ou há-de morrer às mãos dela, ou secar ☐

Não posso entreter-me com a especulação metafísica porque sei de sobra, e por mim, que todos os sistemas são defensáveis e intelectualmente possíveis; e, para gozar a arte intelectual de construir sistemas, falta-me o poder esquecer que o fim da especulação metafísica é a procura da verdade.

Sem passado feliz em cuja lembrança torne a ser feliz, sem nada no presente que me alegre ou me interesse, sem sonho ou hipótese de futuro que seja diferente deste presente ou possa ter outro passado que esse passado — jazo a minha vida, consciente espectro de um paraíso em que nunca estive, cadáver-nado das minhas esperanças por haver.

Felizes os que sofrem com unidade! Aqueles a quem a angústia altera mas não divide, que crêem, ainda que na descrença, e podem sentar-se ao sol sem pensamento reservado.


Título: Mesmo que eu quisesse criar
Heterónimo: Bernardo Soares
Número: 250
Página: 248
Nota: [7-18, ms.];