As miserias de um homem que sente


L. do D.

Uma secção intitulada: Paciencias
(inclue Na Fl do Alh?)
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As miserias de um homem que sente o tedio da vida
do terraço da sua villa rica são uma cousa; são outra
cousa as miserias de quem, como eu, tem que contemplar
a paysagem do meu quarto num 4.º andar da Baixa, e
sem poder esquecer que é ajudante de guarda-livros.
"Tout notaire a rêvé des de sultanes".....

Tenho um prazer intimo, da ironia do ridiculo
immerecido, quando, sem que alguem extranhe, declaro,
nos actos officiaes, em que é preciso dizer a profissão:
empregado no commercio. Não sei como inserto o meu
nome vem assim no Annuario Commercial.

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Epigraphe ao Diario:
Guedes (Vicente), emp. no comm., Rua dos Retrozeiros, 17.4.º
                              ANN. COMM. de Portugal.
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A mania do absurdo e do paradoxo é a
animal spirits alegria animal dos tristes. Como o homem
normal diz disparates por vitalidade, e por
sangue dá palmadas nas costas de outros, os
incapazes de enthusiasmo e de alegria dão cambalhotas
na intelligencia e, a seu [frio] modo, fazem os gestos [quentes] da
vida.
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                  Paciencias

As tias velhas dos que as tiveram, nos serões
a pretroleo das casas vagas na provincia, entretinham
a hora em que a creada dorme ao som crescente
da chaleira com a saudade methodica e reflectida a fazer paciencias com cartas. Tem
saudades em mim d'esse socego inutil alguem
que se colloca no meu logar. Vem o chá e o
baralho velho amontoa-se regular ao canto da meza.
O guarda-louça enorme escurece a sombra, na
sala de jantar apenumbrada. Sua de somno a cara
da creada apressada lentamente por acabar. Vejo isso
tudo em mim com uma angustia e uma saudade
independentes de ter relação com qualquer cousa.
E, sem querer, ponho-me a considerar qual é o stado de
espirito de quem faz paciencias com cartas.


Identificação: bn-acpc-e-e3-7-1-50_0033_17_t24-C-R0150 | bn-acpc-e-e3-7-1-50_0034_17v_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (21.4cm X 19.7cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Com marca LdoD
Manuscrito (pen) : Testemunho manuscrito a tinta preta.
Data: 1918 (low)
Nota: LdoD, Texto escrito em recto e verso de uma folha inteira, com o timbre "F.A. PESSOA | RUA DO OURO, 87, 2º | LISBOA", e com marca de água "BRITISH BANKPOST". Nota: A frase "Tout notaire a rêvé des sultanes" é uma paráfrase condensada de um passo de "Madame Bovary" de Flaubert: "Les plus médiocre libertin a rêvé des sultanes; chaque notaire porte en soi les débris d'un poète".
Fac-símiles: BNP/E3, 7-17.1 , BNP/E3, 7-17.2