Mesmo que eu quisesse criar


Mesmo que eu quisesse criar, (... )

A única arte verdadeira é a da construção. Mas o meio moderno torna impossível o aparecimento de qualidades de construção no espírito.

Por isso se desenvolveu a ciência. A única Coisa em que há construção, hoje, é uma máquina; o único argumento em que há encadeamento, o de uma demonstração matemática.

O poder de criar precisa de ponto de apoio, da muleta da realidade.

A arte é uma ciência...

Sofre ritmicamente.

Não posso ler, porque a minha crítica /hiperacesa/ não descortina senão defeitos, imperfeições, possibilidades de melhor. Não posso sonhar, porque sinto o sonho tão vivamente que o comparo com a realidade, de modo que sinto logo que ele não é real; e assim o seu valor desaparece. Não posso entreter-me na contemplação inocente das coisas e dos homens, porque a ânsia de a aprofundar é inevitável, e, desde que o meu interesse não pode existir sem ela, ou há-de morrer às mãos dela ou secar.

Não posso entreter-me com a especulação metafísica porque sei de sobra, e por mim, que todos os sistemas são defensáveis e intelectualmente possíveis; e, para gozar a arte intelectual do construir sistemas, falta-me o poder esquecer que o fim da especulação metafísica é a procura da verdade.

Um passado feliz em cuja lembrança torne a ser feliz; sem nada no presente que me alegre ou me interesse, sem sonho ou hipótese de futuro que seja diferente deste presente ou possa ter outro passado que esse passado — jazo a minha vida, consciente espectro de um paraíso em que nunca estive, cadáver-nado das minhas esperanças por haver.

Felizes os que sofrem com unidade! Aqueles a quem a angústia altera mas não divide, que crêem, ainda que na descrença, e podem sentar-se ao sol sem pensamento reservado.


Título: Mesmo que eu quisesse criar
Heterónimo: Vicente Guedes
Número: 265
Página: 225
Nota: [7-18, ms.];