O Sensacionista


L. do D.

/O sensacionista/

Neste crepusculo das disciplinas, em que as crenças morrem e os cultos se cobrem de pó, as nossas sensações são a unica realidade que nos resta. O unico escrupulo que preocupe, a unica sciencia que satisfaça são os da sensação.

Um decorativismo interior accentua-se-me como o modo superior e esclarecido de dar um destino à nossa vida. Pudesse a minha vida ser vivida em pannos de arras do espirito e eu não teria abysmos que lamentar.

Pertenço a uma geração — ou antes a uma parte de geração — que perdeu todo o respeito pelo passado e toda a crença ou esperança no futuro. Vivemos por isso do presente com a gana e a fome de quem não tem outra casa. E, como é nas nossas sensações, e sobretudo nos nossos sonhos, sensações inuteis apenas, que encontramos um presente, que não lembra nem o passado nem o futuro, sorrimos à nossa vida interior e desinteressamo-nos com uma somnolencia altiva da realidade /quantitativa/ das cousas.

Não somos talvez muito differentes d'aquelles que, pela vida, só pensam em divertir-se. Mas o sol da nossa preocupação egoista está no occaso, e é em côres de crepusculo e contradicção que o nosso hedonismo escrupuliza.

Convalescemos. Em geral somos creaturas que não aprendemos nenhuma arte ou officio, nem sequer o de gosar a vida. Estranhos a convivios demorados, aborrecemo-nos em geral dos maiores amigos, depois de estarmos com elles meia- hora; só anciamos por os vêr quando pensamos em vel-os, e as melhores horas em que os accompanhamos, são aquellas em que apenas sonhamos que estamos com elles. Não sei se isto indica pouca amizade. Porventura não indica. O que é certo é que as cousas que mais amamos, ou julgamos amar, só tem o seu pleno valôr real quando simplesmente sonhadas.

Não gostamos de espectaculos. Desprezamos actores e dançarinos. Todo o espectaculo é a imitação degradada do que havia apenas de sonhar-se.

Indifferentes — não de origem, mas por uma educação dos sentimentos que varias experiencias dolorosas em geral nos obrigam a fazer — à opinião dos outros, sempre cortezes para com elles, e gostando d'elles mesmo, atravez de uma indifferença interessada, porque toda a gente é interessante e convertivel em sonho, em outras pessoas, passamos (...)

Sem habilidade para amar, ante-cansam-nos aquellas palavras que seria preciso dizer para se tornar amado. De resto, qual de nos quer ser amado? O "on le fatigait en l'aimant" de René não é o nosso rotulo justo. A propria ideia de sermos amados nos fatiga, nos fatiga até ao alarme.

A minha vida é uma febre perpetua, uma sêde sempre renovada. A vida /real/ apoquenta-me como um dia de calôr. Ha uma certa baixeza no modo como apoquenta.


Título: O Sensacionista
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: II
Número: 329
Página: 64 - 66
Nota: [144D(2)-82, 83 e 84, ms.];