Com um charuto caro


L. do D.

Com um charuto caro e os olhos fechados é ser rico.

Como quem visita um logar onde passou a juventude, comsigo, com um cigarro barato, regressar inteiro ao tempo da minha vida em que era meu uso fumal-os. E atravez do sabor leve do fumo todo o passado revive-/me/.

Outras vezes será um certo doce. Um simples bombom de chocolate escangalha-me ás vezes os nervos com o excesso de recordações que os estremece. A infancia! E entre os meus dentes que se cravam na massa escura e macia, trinco e /gósto/ as minhas humildes felicidades de companheiro alegre do soldado de chumbo, de cavalleiro congruente com a canna casual meu cavallo. Sobem-me as lagrimas aos olhos e junto com o sabor do chocolate mistura-se ao meu sabor a minha felicidade passada, a minha infancia ida, e pertenço voluptuosamente á suavidade da m[inha] dôr.

Nem por simples é menos solenne este meu ritual no paladar.

Mas é o fumo do cigarro o que mais espiritualmente me reconstroe momentos passados. Elle apenas roça a m[inha] consciencia de ter paladar. Porisso mais em gaze e transparencia me evoca as horas que morri, mais longinquas as faz presentes, mais nevoentas quando me envolvem, mais ethereas quando as corporizo. Um cigarro inaceitavel, um charuto barato toldam de suavidade alguns meus momentos. Com que subtil plausibilidade de sabor-aroma reergo os scenarios mortos e represento outra vez as comedias do meu passado, tão seculo dezoito sempre pelo afastamento malicioso e cançado, tão medievaes sempre pelo inevitavelmente perdido.


Título: Com um charuto caro
Heterónimo: Não atribuído
Número: 337
Página: 336
Data: 21-10-1931 (medium)
Nota: [9-6r];