É nobre ser tímido


É nobre ser tímido, ilustre não saber agir, grande não ter jeito para viver.

Só o Tédio, que é um afastamento, e a Arte, que é um desdém, douram de uma semelhança de contentamento a nossa (...)

Fogos-fátuos que a nossa podridão expira, são ao menos luz nas mesmas trevas.

Só a infelicidade elementar e o tédio puro das infelicidades contínuas, é heráldico como o são descendentes de heróis próximos.

Sou um poço de gestos que nem em mim se esboçaram todos, de palavras que nem pensei pondo curvas nos meus lábios, de sonhos que me esqueci de sonhar até ao fim.

Sou ruínas de edifícios que nunca foram mais do que essas ruínas, que alguém se furtou, em meio de construí-las, de pensar em quem construiu.

Não nos esqueçamos de odiar os que gozam porque gozam, de desprezar os que são alegres, porque não soubemos ser, nós, alegres como eles...

Esse sonho falso, esse ódio fraco não são senão o pedestal tosco e /sujo/ da terra em que se finca e sobre o qual, altiva e única, a estátua do nosso Tédio se ergue, escuro vulto cuja face um sorriso impenetrável nimba vagamente de segredo.

Benditos os que não confiam a vida a ninguém.


Título: É nobre ser tímido
Heterónimo: Vicente Guedes
Número: 21
Página: 63
Nota: [9-25, ms.];