Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 28-27)

Sou curioso de todos


Sou curioso de todos, avido de tudo,
voraz da idéa de todas. Pesa-
me como a perda de           a noção
que tudo não pode ser visto, nem
tudo lido, nem tudo pensado...

Mas não vejo attentamente com attenção, nem
leio com importancia, nem penso
com proseguimento. Em tudo sou
um dilletante intenso e fruste.

A minha alma é fraca de mais
para ter sequer a força do seu
proprio enthusiasmo. Sou feito
das ruinas do inacabado, e é uma paisagem
de desistencias a que definiria o meu ser.


Divago, se me concentro; tudo
em mim é decorativo e
incerto, como um espectaculo
na bruma.


Esta tendencia carnal para
converter todo pensamento em expressão,
ou, antes, pensar como expressão
todo pensamento; de ver toda a emoção
em côr e fórma, e até toda negação em
rhythmo,      
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Escrevo com uma grande intensidade
de expressão; o que sinto nem sei o
que é. Sou metade somnambulo e
a outra parte nada.

A mulher que sou quando me conheço.
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O opio dos crepusculos regios
e a maravilha deitada ás escuras, á mão
que se desenrosca dos farrapos.
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Ás vezes é tam grande, tam
rapida, tam abundante a
fluencia concentrada de imagens
e de phrases certas que se me
desenrola no espirito desattento,
que raivo, estorço-me, choro de
ter que as perder — porque as
perco. Cada uma teve o seu
momento, e não pode ser lembrada
fóra d'elle. E fica-me,
como a um amoroso a saudade
de um rosto amavel entrevisto
e não fixado, a memoria do
meu ser como de mortos,

o debruçar-me sobre o abysmo de um
passado rapido de imagens e ideas,
figuras mortas da bruma de que ellas
mesmas se formaram.

Fluido, ausente, inessen-
cial, perco-me de mim
como se me afogasse em
nada; sou transacto, e
esta palavra, que falla e
para, diz, tem, tudo.

O rhythmo da palavra,
a imagem que evoca, e o seu
sentido como idéa, junctos
necessariamente em qualquer palavra,
são para mim junctos com
separação. Só de pensar
uma palavra eu comprehen-
deria o conceito de Trindade.
Penso a palavra "innumero"
e escolho para exemplo porque é
abstracta e escusa. Mas se
a oiço no meu ser, rolam
grandes ondas com sons que não
param no mar sem fim;
constellam-se em céus, e não é
de estrellas, mas da musica de todas
as ondas que os sons se constellam,


e a idéa de um infinito decorrente
abre-se-me, como uma bandeira desfraldada,
em estrellas com sons do mar, e a um
mar que reflecte todas as estrellas.


Que D. Sebastião venha pelo nevoeiro
não desdiz da historia. Toda a historia
vae e vem entre nevoas, e as
maiores batalhas de que se narram,
as maiores pompas, os mais
largos conseguimentos não são mais
que espectaculos na bruma, cortejos
na distancia do crepusculo e do
apagamento.

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A alma em mim é expressiva e
material. Ou estagno num não-ser
de linho sensivel, ou accordo, e se
accordo projecto-me em palavras
como se essas fôssem o abrir de olhos
do meu ser. Se penso, o pensamento
surge-me no proprio espirito com phrases,
seccas e rhythmadas, e eu não distingo
nunca bem se penso antes de o
dizer, se apenas depois de me ver a tel-o
dicto. Se dou por mim sonhado, ha
palavras logo em mim. Em mim toda

emoção é uma imagem, e todo sonho uma pintura
musicada. O que escrevo pode ser mau, mas é mais
em que o que penso... Assim por vezes o acredito...

Desde que vivo, narro-me, e o mais pequeno
dos meus tedios commigo, se me desbruço sobre elle,
desabrocha, por um magnetismo de          ,
em flores de cores de musicaes abysmos.