Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 114(1)-75)

Carta


          Carta

Assim soubesses tu compre-
hender o teu dever de
seres meramente o sonho
de um sonhador. Seres
apenas o thuribulo da cathe-
dral dos devaneios. Talhares
os teus gestos como sonhos, para
que fôssem apenas janellas
abertas para paysagens
novas da na tua alma. De tal
modo architectar o teu corpo
em arremêdos de sonho que
não fôra possivel ver-te
sem pensar n'outra cousa,
que lembrasses tudo menos tu
propria, que ver-te fora ouvir ouvir
musica a atravessar, somnam-
bulo, grandes paysagens de lagos
mortos, vagas florestas silencio-
sas perdidas ao fundo de outras
epocas, onde invisiveis povos
diversos vivem sentimentos que


2
não temos.

Eu não te quereria para
nada senão para te não
ter. Queria que, sonhando
eu e se tu apparecesses, eu
pudesse imaginar-me ainda
sonhando — nem te vendo talvez,
mas talvez reparando que o luar
enchera de             os lagos
mortos e que eccos de canções
ondeavam subitamente na
grande floresta inexplicita,
perdida em epocas impossiveis.

A visão de ti seria o
leito onde a minha alma
adormecesse, creança doente,
para sonhar outra vez com
outro ceu. Fallares? Sim, mas
que ouvir-te fora não te
ouvir mas ver grandes pontes
ao luar ligar as duas margens
escuras do rio que vae ter
ao ancião mar / onde as cara-
vellas são novas para sempre /.



Sorrias? Eu não sabia d'isso, mas nos meus ceus interiores
andavam as estrellas. Olhavas-me dormindo. Eu não reparava n'isso
mas no barco longinquo cuja vela de sonho ia sob o luar passando longinquas marinhas.