O povo é bom rapaz


O povo é bom rapaz.

O povo nunca é humanitario. O que ha de mais fundamental na creatura do povo é a attenção estreita aos seus interesses, e a exclusão cuidadosa, practicada tanto quanto possivel, dos interesses alheios.

Quando o povo perde a tradição, quer dizer que se quebrou o laço social; e quando se quebra o laço social, resulta que se quebra o laço social entre a minoria e o povo. E quando se quebra o laço entre a minoria e o povo, acabam a arte e a verdadeira sciencia, cessam as agencias principaes, de cuja existencia a civilização deriva.

Existir é renegar. Que sou hoje, vivendo hoje, senão a renegação do que fui hontem, de que fui hontem? Existir é desmentir-se. Não ha nada mais symbolico da vida do que aquellas noticias dos jornaes que desmentem hoje o que o proprio jornal disse hontem.

Querer é não poder. Quem pôde, quiz antes de poder só depois de poder. Quem quer nunca ha de poder, porque se perde em querer. Creio que estes principios são fundamentaes.


Título: O povo é bom rapaz
Heterónimo: Não atribuído
Número: 579
Página: 513
Nota: [138A-10r];
Nota: Jerónimo Pizarro edita este texto em apêndice, no conjunto "Textos sem destinação certa inventariados fora do núcleo" (2010: 490-516).