Criei para mim


Criei para mim, fausto de um opprobrio, uma pompa de dôr e de apagamento. Não fiz da minha dor um poema, fiz d'ella, porém, um cortejo. E da janella para mim contemplo, espantado, os occasos roxos, os crepusculos vagos de dores sem razão, onde passam, nos cerimoniaes do meu descaminho, os pajens, as fardas, os palhaços da minha incompetência nativa de existir. A creança, que nada matou em mim, assiste ainda, de febre e fitas, ao circo que me dou. Ri dos palhaços, sem haver cá fóra do circo; põe nos habilidosos e nos acrobatas olhos de quem vê alli toda a vida. E assim, sem alegria, mas contente, entre as quatro paredes do meu quarto dorme, por inercia, com o seu pobre papel feio e gasto, toda a angustia insuspeita de uma alma humana que transborda, toda, o desespero sem remedio de um coração a quem Deus abandonou.

Caminho, não pelas ruas, mas atravez da minha dor. As casas alinhadas são as impossibilidades que me cercam na alma; ☐
os meus passos soam no passeio como um dobre ridiculo a finados, um ruido de espectro na noite, final como um recibo ou uma cova.

Separo-me de mim e vejo que sou um fundo d'um poço.

Morreu quem eu nunca fui. Esqueceu a Deus quem eu havia de ser. Só o interludio vazio.

Se eu fosse musico escreveria a minha marcha funebre, e com que razão a escreveria!


Título: Criei para mim
Heterónimo: Não atribuído
Número: 584
Página: 515
Nota: [138A-41r];
Nota: Jerónimo Pizarro edita este texto em apêndice, no conjunto "Textos sem destinação certa inventariados fora do núcleo" (2010: 490-516).