Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 114(3)-35)

Copia de uma carta para Paris


                              Lisboa, 14 de Março de 1916.

Meu querido Sá-Carneiro:

Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental —
uma ansia afflicta de fallar comsigo. Como de aqui se depre-
hende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto — que estou hoje
no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da phrase fal-
lará por mim.

Estou num d'aquelles dias em que nunca tive futuro.
Ha só um presente immovel com um muro de angustia em torno.
A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá;
e é esta a razão intima de todo o meu soffrimento. Ha barcos
para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem
ha desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu ha muito
tempo, mas a minha mágua é mais antiga.

Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a
minha consciencia do meu corpo, que sou a creança triste em
quem a Vida bateu. Puzeram-me a um canto de onde se ouve
brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por
uma ironia de lata. Hoje, dia quatorze de Março, ás nove ho-
ras e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.

No jardim que entrevejo pelas janellas caladas do
meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos
ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto; e assim nem
a idéa de mim fugido pode, na minha imaginação, ter balou-
ços para esquecer a hora.

Pouco mais ou menos isto, mas sem estylo, é o meu
estado de alma neste momento. Como á veladora do "Marinheiro",
ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. a vida
aos poucos, a goles, por intersticios. Tudo isto está impres-
so em typo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-
se.

Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe
jurar que esta carta é sincera, e que as cousas de nexo hys-
terico que ahi vão sahiram expontaneas do que sinto. Mas v.
sentirá bem que esta tragedia irrepresentavel é de uma realida-
de de cabide ou de chavena — cheia de aqui e de agora, e pas-
sando-se na minha alma como o verde nas folhas.

Foi por isto que o Principe não reinou. Esta phra-
se é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as phra-
ses absurdas dão uma grande vontade de chorar.

Pode ser que, se não deitar hoje esta carta no cor-
reio, amanhã, relendo-a, me demore a copial-a á machina, para
inserir phrases e esgares d'ella no "Livro do Desasocego". Mas
isso nada roubará á sinceridade com que a escrevo, nem á dolo-
rosa inevitabilidade com que a sinto.

As ultimas notícias são estas. Ha tambem o estado
de guerra com a Allemanha, mas já antes d'isso a dôr fazia sof-
frer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda d'uma
caricatura casual.

Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um
abandono ao com que se soffre, um goso astucioso dos solavan-
cos da alma, não muito differentes d'estes.

De que côr será sentir?                                                  
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Milhares de abraços do seu, sempre muito seu
                (a) Fernando Pessoa.

P. S. — Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-
a, vejo que, decididamente, a copiarei amanhã, antes de
lh'a mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escripto
o meu psychismo, com todas as suas attitudes sentimentaes
e intellectuaes, com toda a sua hystero-neurasthenia funda-
mental, com todas aquellas intersecções e esquinas na con-
sciencia de si-proprio que d'elle são tão caracteristicas...

Você acha-me razão, não é verdade?