Tenho dó dos pobres


Tenho dó dos pobres. E também tenho dó dos ricos. Tenho mais dó dos ricos, porque são mais infelizes. Quem é pobre pode julgar que, se deixasse de o ser, seria feliz. Quem é rico sabe que não há maneira de ser feliz.

Quem é pobre tem uma só preocupação, ou uma só preocupação principal — a pobreza. Quem é rico, como infelizmente não tem essa, tem que ter todas as outras. Nunca vi homem rico mais feliz que um pobre; a não ser que por felicidade se entenda aquilo que se pode comprar no alfaiate e no ourives, e comer-se num restaurante. Mas até este ponto de materialismo histórico não creio que vão os mesmos...

Os pobres são felizes: têm uma ilusão — crêem que o alfaiate, o ourives, o dono do restaurante caro são os dispensadores da felicidade. Crêem nisso. Os ricos são os ateus do alfaiate.


Título: Tenho dó dos pobres
Heterónimo: Bernardo Soares
Número: 664
Página: 539
Nota: [133C-86, dact.];
Nota: Apenas Teresa Sobral Cunha inclui este texto no corpus do "Livro do Desassossego". Texto retirado do corpus na edição de 2013.