Ha socegos do campo na cidade



L. do D.

Ha socegos do campo na cidade. Ha momentos, sobretudo nos meio-dias de estio, em que, nesta Lisboa luminosa, o campo, como um vento, nos invade. E aqui mesmo, na Rua dos Douradores, temos o bom somno.

Que bom á alma vêr calar, sob um sol alto quieto, estas carroças com palha, estes caixotes por fazer, estes transeuntes lentos, de aldeia transferida! Eu mesmo, olhando-os da janella do escriptorio, onde estou só, me transmuto: estou numa villa quieta da provincia, estagno numa aldeola incognita, e porque me sinto outro sou feliz.

Bem sei: se ergo os olhos, está deante de mim a linha sordida da casaria, as janellas por lavar de todos os escriptorios da Baixa, as janellas sem sentido dos andares mais altos onde ainda se mora, e, ao alto, no angular das trapeiras, a roupa de sempre, ao sol entre vasos e plantas. Sei isto, mas é tam suave a luz que doura tudo isto, tam sem sentido o ar calmo que me involve, que não tenho razão sequer visual para abdicar da minha aldeia postiça, da minha villa de provincia onde o commercio é um socego.

Bem sei, bem sei... Verdade seja que é a hora de almoço, ou de repouso, ou de intervallo. Tudo vae bem pela superficie da vida. Eu mesmo durmo, ainda que me debruce da varanda, como se fôsse a amurada de um barco sobre uma paisagem nova. Eu mesmo nem scismo, como se estivesse na provincia. E, subitamente, outra coisa me surge, me involve, me commanda: vejo, por traz do meio-dia da villa toda a vida em tudo da villa; vejo a grande felicidade estupida da vida domestica, a grande felicidade estupida da vida dos campos, a grande felicidade estupida do socego na sordidez. Vejo, porque vejo. Mas não vi e disperto. Olho em roda, sorrindo, e, antes de mais nada, saccudo dos cotovellos do fato, infelizmente escuro, todo o pó do appoio da varanda, que ninguem limpou, ignorando que teria um dia, um momento que fôsse, que ser a amurada sem pó possivel de um barco singrando num turismo infinito.

29/8/1933.