Escrever é Esquecer - Usa (BNP/E3, 1-14)

Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa


L. do D.


Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e deso-
lo-me. O meu instincto de perfeição deveria inhibir-me de
acabar; deveria inhibir-me até de dar começo. Mas distraio-
me e faço. O que consigo é um producto, em mim, não de uma
applicação da vontade, mas de uma cedencia d'ella.
Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não
tenho alma para suspender. Este livro é a minha cobardia.




A razão por que tantas vezes interrompo um pensamento
com um trecho de paysagem, que de algum modo se integra
no schema, real ou supposto, das minhas impressões, é que
essa paysagem é uma porta por onde fujo ao conhecimento da
minha impotencia creadora (fecunda). Tenho a necessidade,
em meio das conversas commigo que formam as palavras d'es-
te livro, de fallar de repente com outra pessoa, e dirijo-
me á luz que paira, como agora, sobre os telhados das ca-
sas, que parecem molhados de tel-a de lado; ao agitar
brando das arvores altas na encosta citadina, que parecem
perto, numa possibilidade de desabamento mudo; aos carta-
zes sobrepostos das casas ingremadas, com janellas por let-
tras onde o sol morto doira gomma humida.

Porque escrevo, se não escrevo melhor? Mas que seria
de mim se não escrevesse o que consigo escrever, por infe-
rior a mim mesmo que nisso seja? Sou um plebeu da aspira-
ção, porque tento realizar; não ouso o silencio como quem
receia um quarto escuro. Sou como os que prezam a medalha
mais que o exforço, e gosam a gloria na pelliça.

Para mim, escrever é desprezar-me; mas não posso dei-
xar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e
tomo, o vicio que desprezo e em que vivo. Ha venenos ne-
cessarios, e ha-os subtilissimos, compostos de ingredien-
tes da alma, hervas colhidas nos recantos das ruinas dos sonhos
, papoulas negras achadas ao pé das sepulturas dos propositos
, folhas longas de arvores obscenas que agitam
os ramos nas margens ouvidas dos rios infernaes da alma.

Escrever, sim, é perder-me, mas todos se perdem, por-
que tudo é perda. Porém eu perco-me sem alegria, não como
o rio na foz para que nasceu incognito, mas como o lago
feito na praia pela maré alta, e cuja agua sumida nunca mais
regressa ao mar.