Escrever é Esquecer - Usa (BNP/E3, 3-17r)

Invejo — mas não sei se invejo


L/D.

Invejo — mas não sei se invejo — aquelles de quem
se póde escrever uma biographia, ou que podem escrever a
propria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo,
narro indifferentemente a minha autobiographia sem factos,
a minha historia sem vida. São as minhas Confissões, e, se
nellas nada digo, é que nada tenho que dizer.

Que ha ( de alguem ) confessar que valha ou que sirva?
O que nos succedeu, ou succedeu a toda a gente ou só a nós;
num caso não é novidade, e no outro não é de comprehender.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de
sentir. O que confesso não tem importancia, pois nada tem
importancia. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias
das sensações. Comprehendo bem as bordadoras por magua e
as que fazem meia porque ha vida. Minha tia velha fazia
paciencias durante o infinito do serão. Estas confissões
de sentir são paciencias minhas. Não as interpreto, como
quem usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto,
porque nas paciencias as cartas não teem propriamente va-
lia. Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço com-
migo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos es-
petadas e se passam de umas creanças para as outras. Cuido
só de que o pollegar não falhe o laço que lhe compete.
Depois viro a mão e a imagem fica differente. E recomeço.

Viver é fazer meia com uma intenção dos outros.
Mas, ao fazel-a, o pensamento é livre, e todos os princi-
pes encantados podem passear nos seus parques entre
mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso.
Crochet das coisas... Intervallo... Nada.....

De resto, com que posso contar commigo? Uma acui-
dade horrivel das sensações, e a comprehensão profunda de
estar sentindo... Uma intelligencia aguda para me destruir,
e um poder de sonho soffrego de me entreter... Uma vontade
morta e uma reflexão que a embala, como a julgando-a um filho vivo...
Sim, crochet...