Não sei que vaga caricia


L. do D.

Não sei que vaga caricia, tanto
mais branda quanto não é caricia,
a brisa incerta da tarde me
traz á fronte e á comprehensão.
Sei só que o tedio que soffro se
me ajusta melhor, um momento,
como uma veste que deixe de
roçar numa chaga.

Pobre da sensibilidade que de-
pende de um pequeno movimento
do ar para o conseguimento, ainda
que episodico, da sua tranquilli-
dade! Mas assim é toda sensi-
bilidade humana, nem creio
que pese mais na
balança dos seres o dinheiro subita-
mente ganho, ou o sorriso subita-
mente recebido, que são para outros
o que para mim foi, neste mo-
mento, a passagem breve de
uma brisa sem continuação.


2

Posso pensar em dormir. Posso
sonhar de sonhar. Vejo mais claro
a objectividade de tudo. Uso com
mais comforto o sentimento externo
da vida. E tudo isto, effectiva-
mente, porque, ao chegar quasi á
esquina, um virar no ar da brisa
me alegra a superficie da pelle.

Tudo quanto amamos ou perde-
mos — coisas, seres, significações — nos
roça a pelle e assim nos chega á alma,
e o episodio não é, em Deus, mais que
a brisa que me não trouxe nada salvo
o allivio supposto, o momento propicio
e o poder perder tudo esplendidamente.
          _____________________

                            23/4/1930.


Identificação: bn-acpc-e-e3-3-1-88_0089_45_t24-C-R0150 | bn-acpc-e-e3-3-1-88_0090_45v_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (22.0cm X 16.1cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Com marca LdoD
Manuscrito (pen) : Testemunho manuscrito a tinta preta.
Data: 23-04-1930
Nota: LdoD, Texto escrito em recto e verso de meia folha de papel com uma frase datiloscrita no verso: 'Resumo do movimento de contas'.
Fac-símiles: BNP/E3, 3-45.1 , BNP/E3, 3-45.2